domingo, dezembro 27, 2020


As manhãs nascidas na casa dela
tinham um ritmo próprio, estranho, forçoso
fazia um café demasiado forte
era impossível aguentá-lo, ouvia-me
a respirar fundo, como se desafiado
por um adversário tenaz
a imaginação expunha-se,
tornava-se física, e tinha secções
como uma orquestra, sopro, cordas
diz lá que bebedeira soa a isto, explode
os seus canhões numa batalha que não se vê
perdoa, não me quero sentar
prefiro que não soe como o resto
gosto que se sinta a trepidação, o balanço
o que têm de melhor os poemas
é o para cá e para lá das linhas apagadas
as que se lêem mesmo assim
como um pó soprado deixa o pigmento suave
da flor ao fantasma, um soluço
as tais músicas a cem braças de profundidade
o que é preciso para que o verso assente
e te deixe sem fôlego
a mão enredada nas linhas de um mapa
como numa cicatriz antiga
tenho aprendido a ler como os miúdos
especialmente se o fazem em coro
cada nome é um anúncio, cada ser causa espanto
aos pássaros sinto-os pousar-me nas costelas
um eco despe outro, marcamos as posições
de tudo, relâmpagos, algum novo furo
nesse corpo de navio, 
como se fôssemos esquecer logo de seguida,
como se a memória se deixasse esmagar
incapaz de conter algo mais
que um contorno na escassa luz, pois
já vês que mesmo quando não te importa mais
uma mulher é ainda um cerco, 
parece que baixa a voz, encosta a boca
ao ouvido de algum anjo e repete
as mentiras que lhe contaste.


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