terça-feira, janeiro 12, 2021


Como nos cansa o que existe, 
de roda de um prego parece que assobia
o velho quadro e o cordame estrangula o quarto
no alto a espuma e nuvens desgarradas
um cinema desmembrando o bairro
ou o rumor de extensões de trigo
depois da chuva, pedras das que devoram
a imaginação, certa passagem enredante
de um caderno, descrições vivas
contra a luz certa capaz de estalar as paredes,
impressões que raros puderam cercar
com o sono leve que têm,
como aguardam passos que cantem
pondo ordem na respiração entre as tuas ervas
silencioso tudo isto, expectante
na distância e no frio que faz
de umas coisas para as outras, 
um cântaro de barro em pedaços
recompondo o passado, 
é o arrepio do que se reconhece, 
aquilo que antigamente nos fez homens
aquela canção como uma febre era o mar então
ainda jovem, o seu sal riscava-nos a pele
íamos às ordens de algum desses anjos irados
sentado na escarpa diante de um céu
tão azul como uma lâmina, inspirando-nos terror.
Só por ser iletrado a sua vida era uma espécie
de poesia, mas ouve-o tu por um bocado
fugindo da história, da lei, limpo de toda a culpa
e vê como canta arrasta bosques cheira o sol
em rastos tão frios, sabe ler
as existências dos desaparecidos,
separa-lhes os ossos num murmúrio, 
e reza ou olha as coisas demoradamente
como um animal ferido,
diz-nos o que veríamos se bebêssemos a escuridão
e se não faz ideia como conjugar os verbos,
na profundidade dos seus gestos
ouvimos o golpe na raiz da língua, 
nomes que nos resistiam há muito
por nos faltar o ritmo a entoação certa
o modo como o seu velho sangue zumbe
e faz a preferência das abelhas,
como as flores se erguem num mesmo som
e inquietam a nossa morte, 
dão-nos novas das vidas todas que perdemos,
dos actos irresponsáveis, brutais e dos amores
de finais mais certos, mais rudes, em grito
em vez desta luz de vela
que se consome até um final inodoro
só porque ninguém se deu ao trabalho
ou teve a cortesia de a apagar.


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