domingo, dezembro 06, 2020


Há outros quartos aqui, em volta
oiço rombos, caem de um piso a outro
objectos cortantes, absurdos,
e os canos explicam-se, ouve-se mastigar
ouvem-se cochichos atrás da porta
passos que nos sacodem como visões
há um brilho mais doce que a aurora
algum deus vivo amarrado, colérico
que lâmpada!
os insectos sempre de volta
bêbedos do seu sangue, mas a fuga
se houvesse, se à terra não a tivessem
dobrado como a um mapa,
recolhido os mares numa garrafa,
e as estrelas, se não as apagaram
onde caíram? Levantamos ferro
e logo a quilha rebenta
o juízo desfaz-se em espuma
os ventos não guiam a coisa nenhuma
não se vende nem um livro, 
tão ousados que não há quem nos aguente
ou queira saber, uma lástima na verdade
é o que somos, e as ambições piores
o rasgo malicioso, tudo isso trocado
por um mediatismo sonso,
já nem o prazer, a alegria de mentir
com quantos dentes
essa música dos dias de miséria
exageros fenomenais, a ironia sagrada
na melhor das hipóteses, hoje
traem-nos as nossas mãos, viram-nos
do avesso ainda velhos e admiráveis ecos
mas é terrível cair nestas linhas
de que ninguém sabe, uma senha inútil
diz-se: aqui o mundo já acabou, 
carris abandonados, soldados
que nem os seus nomes ouviram
ou sequer os disparos, sons cobrindo
distâncias frias, glaciais,
a história reduzida a algum cadáver,
talvez a sua memória ou música se aguente,
ressoe infinitamente num par de versos,
a imagem vulgar de flores num vaso
mas um perfume que encanta e inquieta
como uma língua estranha
espécies que vivem só entre o pó
dos livros, perecendo numa mancha de tinta
a intriga dolorosa das nossas noites,
- sombras devorando sombras -,
a inocência que se perde falando alto
revendo os dias
o agrado com que a morte nos olha
desde um texto antigo,
perde-se o juízo por tão pouco
uma recordação que não nos larga, 
a mulher que, afinal, nem existiu,
uma vida em que nunca te encontravas,
coisas que entram na distância que somos,
e por fim escreve-se um poema
como quem abre outra cova.


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