terça-feira, dezembro 01, 2020

Mais um caso resolvido pelo nosso Sherloca de serviço

 

Ainda sobre a invejável e inspiradora confusão que esteve na origem desta antologia, em que boa parte dos suicidas (oito pelas últimas contas) não passam de uma nebulosa ficção de Eliseo González, o que sobre esta podia depor, à laia de esclarecimentos, já ficou ali, e só me resta agora virar-me para a parede, deixar que me afastem as pernas numa inspecção vigorosa, enquanto me revistam os bolsos. Ficaria muito feliz se ouvisse passos do lado de fora da porta de casa, que me viessem pela noite, sobressaltando os vizinhos com uma farra dessas à filme americano, alguma brigada de narcóticos e outras substâncias ilícitas que apreendesse a meia dúzia de exemplares da obra que me restam. E ainda que me sacassem a mais delirante das confissões, com ranho e o raio, admitindo que sabia de tudo, que tramámos a coisa assim mesmo, eu e o Melícias (quem dera!)... Mas com muita pena minha, além de uma excelente antologia de poemas, com algumas campas para mostrar e, pelo meio, uma vala comum que, se aberta, espreitando bem no fundo, nem um ossinho se verá, o que temos são uns desesperos fingidos (sentir sinta quem lê, porra!), numa façanha que o Henrique garante que não é nada de especial, ele que nunca tem lente para coisas que não sejam chocadas lá na capoeira das suas conveniências. Mas tenho pena, dizia, pois acho que vai ficar por isto mesmo. Aqueles taralhoucos que ele junta pouco contribuem além de colarem os cartazes ("vivo ou morto"), revezando-se nos apupos, apensando mais um capítulo ao meu longo processo, cadastro que só não merece antologia porque do lado de lá são todos tão sonsos e tão chatos, tão fraquinhos no acusatório que uma só frase basta para se ficar com o torpor de quem cumpriu já a perpétua. Mas, de literário, não se espere nada. E que condenação poderia doer-nos mais fundo que a suspeita de que a geração em que demos por nós trancafiados é o pior dos castigos. Olhai em volta. O que se vê? “Movemo-nos numa atmosfera confusa e não nos distinguimos com nitidez”, dizia o Artur Portela Filho. Para o mal dos pecados dos raros espíritos a quem reste algum sentido de humor, pior ainda é que vão dizer que fomos contemporâneos destes, esta rataria que se aflige com tudo por igual. Quem sabe só ficarão os guinchos e depois a vontade de atirar um fósforo, queimar a montanha, enterrar a época toda por junto. De resto, que género de súplicas poderíamos dirigir aos vindouros, a esses que darão por si nauseados com a banalidade do enredo que nos tinha distraídos neste can-can de pernas muito feias em cima da mais grotesca das catástrofes. Talvez ao regime balofo desta intriga queixosa reajam com mais pena de nós do que deles mesmos, se sobrar testemunho das coisas em volta das quais se organizavam os nossos ódios, só eles infatigáveis, e como ninguém parecia admirar senão com fita métrica, garantindo que ninguém era mais alto. Como todos eram guias, uns mais cães que outros, “roendo a legítima ambição de soterrar os demais com obras devastadoras”, ou, nos momentos piores, perseguindo a própria cauda, supondo sempre que se dirigiam a cegos ou à turistagem, e com aquele espalhafato auto-publicitário, gestos cheios de uma tola enfâse, típica de personagens que se julgam autores, e que buscam um autor que não se envergonhe de os chamar, como faziam as mães, à porta de casa como de uma obrinha digna de memória. Eis o drama que por último vai restando, esse de não terem quem lhes dê um arco narrativo, quem faça o favor de lhes explicar o seu papel, o móbil por trás das suas exasperações, por isso se agarram a emoções dessas que não passam do esfarelar do ego, do seu desgaste natural quando faltam até aquelas paixões descabidas, as obsessões desvairadas, Capuletos e Montéquios, moinhos soprando uns para os outros nos dias em que o vento não arranja a moral de pôr um pé nesta terra que nem a honra tem de ser devastada, ficando apenas esquecida, e nem um crimezinho que expiar se arranja, nada para o escândalo, o que provoca estas tão sovinas e áridas existências, tão sem afecto, fingindo bebedeiras em torno de garrafas bebidas por uns vagos ancestrais, ficam aí, fuçando o esterco, a juntar os trocos a ver se dá para uma polémica que encha a tarde de uns rubores, lá se vão apeando nos inter-regionais do mediatismo, agastando-se com inúteis querelas, e há sempre algum que recapitula, lembra que foi sempre coerente, que sempre defendeu isto, vejam-me na entrevista que dei, saibam que fui convidado para uma formação, amanhã mesmo vou explicar como se cozinha uma geração, consultem-na na agenda, e ninguém tem mãos a medir, não faltam colóquios, convénios para ociosos basbaques, e para justificá-lo não hesitam em apontar graves altercações, falsos problemas e ainda mais falsas soluções, compadecem-se de tudo e mais alguma coisa, numa hora são contra a rede de regras, de cláusulas e de proibições, na hora seguinte são os maiores legalistas, querem-se na companhia de piratas, bruxas, diabretes de toda a espécie, mas aparecem commumente em cena puxando um bófia pela manga, a chibar alguém com escândalos de côdeas roubadas. É o caso do nosso Sherloca de serviço: cá espreitou um furo, ele que, como qualquer adolescente literário, faz a fita do coca-bichinhos, sempre à cata de algum processo de desmistificação, como se isso fosse fazer pela sua reputação (não se espantem, ele julga que tem uma) o que não fizeram as duas décadas, mais coisa menos coisa, que já por aí anda, com a sua banquinha de postais de outono, acorrendo a jogos florais, artiguinhos a dizer atenção, juntem-se que isto sim, agora vai, como o provedor desses talentos estropiados, génios arrancados do lixo, tropeçando neles em qualquer província mental, sempre com aquela forma de pensamento mágico, em que faz o número de circo de vir dizer que achou mais um para o lote, leva já um elenco a perder de vista, o que daria para trazer à luz numa década as galerias de séculos de ouro soterrados, um bando que tem por um cordel, e leva atrás de si, expondo-os nas feiras, como maravilhosas aberrações líricas, uma trupe absurdamente injustiçada, só que, tão cedo quanto lhes exibe uns pormenores, tratando-os como fósseis vivos para uma qualquer teoria maluca, revela demasiada pressa em abandoná-los, chutá-los de volta para os bastidores, dando a tese de uma estirpe alternativa e fabulosa da evolução poética lusa, e logo se atira àqueles que vê como os protagonistas da época fazendo deles bustos de jardim, a desprezá-los nuns excessos maníacos, aponta lá para trás, diz que nas suas costas é que estão os grandes valores, e ele é que sabe, até nos explica como as coisas devem ser feitas em termos de testes de laboratório, que antologias é que merecem crédito, que ensaios estão revestidos do devido mérito probatório, ele que tem essa ciência de dizer é como eu digo, passando muito depressa a desmerecer os demais, em textos que tresandam a um ressentimento em que se percebe que são os nomes que faltam aqueles que verdadeiramente importam, pois esses é que lhe motivam aquele alvoroço de praça, umas indignações em que vai juntando a sua turba de lesados cá do DVP, como antes os havia do Guerreiro ou do outro, todos com créditos a haver, as poupanças de uma vida, certificados de aforro, colecções em tantos tomos de versos agora dados como sucata, essas arcas que iam alimentar rixas sangrentas na academia, e é assim, praticando a sua chantagem intelectual, tomando para si o encargo de compensador-mor, de enfermeiro na primeira linha, a prestar pronto-socorro às sumidades gravemente feridas, batendo-se pelos deveres de solidariedade nessa fila da sopa para servir os mendicantes do ego, é com isto que nos vem com as suas baldrocas, e já nem quer saber do organizador da antologia, já até abandona as suas convicções sobre autoria, está indignado em nome do poeta que nos pregou uma partida, coitadinho do Eliseo que não recebeu os seus direitos, nem direito teve ao prestígio de, décadas depois, ter visto vingar a sua desconcertante golpada além fronteiras, o que lhe interessa é vir para cima de mim, ele mais os seus bandalhos semi-anónimos, pela ausência de assinatura, de estilo ou até de juízo autónomo. E desmerece a antologia! Coitado. Ele que não tem um verso para a troca. Que se faz valer da sanha de uns sujeitinhos sem estatura, e que, não fosse por entreter este seu show da caverna, esta parede onde faz projectar sombras ampliadas, a ver se inquieta alguém, nem a carteira tinha, não podia andar, com a sua errónea e mínima erudição, a produzir estes ludíbrios, estas confusões que só duram enquanto não chegar aquela idade em que as ilusões adolescentes se cansam, e dão por si velhos, com menos pena de não terem sido poetas do que de não terem aprendido sequer a apreciar a vida ou os poemas, o que vai dar no mesmo.

 

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