quarta-feira, novembro 18, 2020

Punhetas e caixas de música

 

Tenho um cretinote à perna, um desses "milicianos de retaguarda", no género literato-sarnento, e não posso fingir que não fiz por merecer. Se um tipo anda a atirar pedregulhos às poças eventualmente acabará por ser seguido até casa por espíritos desses que, mesmo em assembleia, não fazem melhor do que possuir um batráquio. Não se me pode exigir grandes sobressaltos, que me lance sobre ele de escalpelo em riste para abri-lo na mesa, fazer dele um paciente anestesiado a éter, com vista a revelar a fraca moral da sua espécie. Não tenho tantas mãos assim, e só com estas duas não consigo executar aquele movimento de hélices, nem tenho cabeças de sobra, dessas que seguram um fio de baba a desenhar alvos por fastio, e não consigo, por isso, rebater um por um os pontos de um argumento de recriminações toscas, aquela choraminguice de utentes taralhoucos, que saem das coisas que escrevo como de umas urgências, tantas vezes pior do que entraram. Não tenho tantas vidas que possa enfiar-me em todos esses táxis, e estar disposto a ir saber o que fará por mim mais este ou aquele acidente. O juízo já entorpece só de ouvir ao longe o zumbido dessas distorções maníacas, leitores que lembram aqueles advogados de sociedades absurdamente litigiosas, perseguindo ambulâncias em busca de potenciais clientes. O que não nos falta são órfãos, viúvas; escreve-se por cá muito por amuo, e nada leva propriamente a uma rixa, mas há para aí tanto drama insosso, tanta caneta entregue a peregrinações que só dá para ler à lupa, a fingir raivas, fúrias, mas tudo sai tão leve, superficial, ténue e ligeiro. Ainda que se arraste o hálito pelos tugúrios e luas mais mal frequentados da literatura, essa consciência de espécie acaba sempre meia dúzia de palmos à frente. Para ter a que me agarrar, colecciono cinzeiros ou mesmo urnas, e além de levantar priscas e unhas, busco tudo o que não tenha sucumbido à cinza, e invisto-me em ecos desencaminhados, para não dar por mim a dividir tabaco com um Luís Miguel Rosa. Assim, quando sinto a perna da calça urinada por algum rafeirote, convoco fantasmas e alargo-me em divagações hamletianas para não ficar condenado a ter para contracena apenas a pobre paleta das cores que podem dispensar-nos os vivos. Este, logo a começar, vem-me com aquela do torcionário, porque vocalizo os meus entusiasmos, bato com as panelas numa varanda que só regista ou incomoda quem estiver acordado a uma hora que o relógio já nem sabe em que bolso esqueceu, deixo o percurso desenhado nuns canhenhos, justaponho textos, sou um fantasista totalitário, cheio de tiques de açougueiro, por dizer sim a isto contra aquilo, elogiar um texto e malhar com o ferro quente nos tantos que nos deixam apenas frios, e vou ao ponto de desejar ler coisas que partam a loiça, que horror, obras literárias como dizia o outro, que atinjam como um machado o mar gelado que nos aprisiona. Que espécie de pulha tem a desfaçatez de ainda vir fazer hoje o que gerações de críticos e leitores sempre fizeram? Podia ir-me por ali, manter-me naquele curso sem saltar as sebes, e fingir-me perdido, sem bússola nem defesas, dado o meu “minúsculo repertório idiomático”. Podia, em alternativa, aplicar-me num desmentido, fingindo que tomo a sério o seu exame pericial. Mas isso implicaria tomar aquele exercício delirante e disparatado como algo que se rege por um princípio de honestidade. Não é o caso. Tudo ali não passa de uns retalhos de prosa em tom de polémica, argumentos escaqueirados, colados com fita-cola, imitando com infantil gravidade o que seria uma exposição final a la Poirot, arrebatadora e irrefutável. Mas, na verdade, ao ler qualquer destes textos, o que nos é exigido é uma paciência descomunal para acompanhar um esboço fragilíssimo que ginga de forma tosca entre quantidades diluvianas e artificiosas de informação. Usa os modos do folhetim que vem para o luso-bofetão e as ensaboadelas académicas que levaram tanta gente a desistir de exprimir impressões com recurso a termos generalistas para não convocar estas mosquinhas da fruta. É preciso uma paciência descomunal para aturar um cretino que vem com o disfarce daquela prosa de antiquário, usa dos modos de um ser escrupuloso, munido de um arsenal de informações coligidas com o apuro e o alcance de um empenhado inspector, afinando balanços, trazendo à luz dados novos e mais precisos, corrigindo velhos erros de percepção, mas que, na verdade, não passa de um desses funcionários de armazém, que quando não está a atacar as bonecas, nos vem com peças desirmanadas, umas torres e caixotes a transbordar de papéis, cheios de notas, sublinhados, perfis psicológicos severíssimos para levar ao tribunal de Haia uns tipos que cometeram esse acto de alta traição que é assumir uma qualquer atitude isolada, um juízo absorvido nas suas especulações, tentando fazer furos no casulo, esse que descreveu Artur Portela Filho, o de uma atmosfera literária “morna, espessa, quase sólida, que chega a parecer uma linfa, pastosa, de um branco de leite raiada de amarelo de pus”, que “nos envolve, penetra, liga e aprisiona”, um casulo colectivo e destinado à hibernação. De algum modo toda a prática disfarçadamente crítica deste sabujo da ordem passa por desencorajar qualquer gesto que busque romper com o estado de inércia, esse terreno aplanado e perfeito para projectos de massificação, numa espécie de idealismo literário que não entende que “sem rivalidade e sem polémica entre os Imortais não há vida, e a literatura morre” (H. Bloom). Poderia ir mais longe, ser mais explicativo, mas apenas se acreditasse ter do outro lado um adversário e não apenas um papagaio-vomitador, que representa essa agência que defende o bom-nome do casulo, o qual age sempre como se o grande perigo fosse pôr em causa o conforto e a paz relativa entre esse bando de mancebos pálidos e animados no seu concerto dodecafónico. Podíamos todos perder mais tempo a justificar a necessidade de ganhar a solidão em vez de estarmos sempre entretidos com estas marchas. “Há qualquer coisa entre nós de exército cartaginês, imenso e confuso. Não temos a disciplina imprescindível às forças de numero reduzido”, diz Artur Portela Filho. E, no entanto, isto não altera a evidência de sermos tão poucos. Somos até menos que isso: somos alguns. Mas nunca se sabe quantos. É melhor nem ir por aí. Nunca pôr coisa nenhuma em causa. O que é menos que estarmos reduzidos a uns quantos perfis rudes, impossíveis, como abcessos na boca do tempo, dentes de tal modo desalinhados que, à medida que crescem, causam esse descarrilamento e tornam a nossa mordedura algo de sinistro. “Sermos nós é duro, áspero, glacial e difícil. Encontrarmos a nossa face num espelho permanente é aguçado e doloroso.” Mas um Luís Miguel Rosa está sobretudo empenhado em que o deixem justificar a sua existência, pagar o aluguer do seu quartinho no casulo, escrever periodicamente um conto, um ensaio turvando aquilo que se tornou evidente, como os livros não exprimem nada estatisticamente. Este o que quer é a coisa reduzida à sua escala paródica; por necessidade, por comodidade. Quer subir na hierarquia dos sonsos, dos mornos, dos que vão levando a sua avante porque fazem número, embora esse número não traduza qualquer ritmo ou progressão. Quer estar lá, empoleirado, recebendo o aplauso, a fazer parte de uma encenação de caixa de música, uma fantasia de fundo de armazém, mecânica, habitual, onanista.


 

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