domingo, novembro 29, 2020

Editores de textos

 


Chegou-me à atenção, por via de umas trocas de email em que não participei mas de que me foi dado conhecimento, de que paira sobre uma das nossas edições (língua morta) uma mais do que legítima suspeita envolvendo questões de autoria. Estou a falar da antologia “O meu livro de cabeceira é um revólver – dezassete suicidas”, o qual foi organizado e traduzido por Jorge Melícias e conta com uma nota de apresentação da minha responsabilidade. Segundo parece, todos aqueles poetas (ou uma boa parte, pelo menos) são uma elaborada ficção de Eliseo González, responsável pela antologia “Galería de Suicidas”, que, ao contrário do que comecei por entender, não foi uma mera influência para Melícias, mas foi a influência capital no desenho desta obra. Caberá a Melícias justificar porque foi que isso não ficou mais claro, embora numa das notas “biográficas”, na de um poeta (Tomás González) que sabíamos ser uma espécie de heterónimo, seja mencionada a obra de Eliseo González. Pela minha parte, reconheço que, quando tentei confirmar as datas de nascimento e morte destes poetas estava sempre a ser remetido para aquela antologia. Mas só me foi possível consultá-la parcialmente através do Google Books, e, estando esgotada, não tive sorte quando tentei adquirir um exemplar em alfarrabistas espanhóis. Devo assumir que tenho alguma culpa no cartório no que parece ser um mal dissimulado ‘embuste’? Alguma terei. Podia ter levado mais longe as minhas averiguações. E o que se deu não foi que tenha confiado inteiramente na “idoneidade” (perdoai o palavrão) do Jorge Melícias. Para falar a verdade, estava-me um pouco nas tintas. Este ofereceu-me a oportunidade de publicar uma das melhores antologias de poesia que tenho lido nos últimos anos e eu nem hesitei. E adianto que voltaria a fazê-lo, tendo apenas o cuidado de insistir para que fosse dado outro relevo a Eliseu González, mesmo que sem destruir a sua genial farsa. Mas esta situação permite-me ir um pouco mais longe, esclarecer outros aspectos sobre o trabalho que eu e outros vimos fazendo por trás do selo “língua morta”. O que sou eu, o que somos nós, os que nos aproveitamos desta possibilidade de fazer livros como um modo de reencantamento, desde logo contra todas essas realizações seríssimas de um meio editorial enfadonho, e que não nos traz nada de mais encorajante, o que somos nós contra tudo o que diariamente nos abate? Somos editores de textos. Literários ou outros, peças avulsas de um museu do espanto, de uma casa assombrada, de um teatro agressivo, de causar arrepios, de espancar almas, essas que estão tão necessitadas de levar porrada, de ficarem por um triz, e, honestamente, pela minha parte estou-me nas tintas para o aspecto social, a menos que se me apresenta, o contexto à volta, que abomino, e só não me alheio se vir uma aberta, um flanco mais exposto, uma oportunidade de puxar bem atrás a manápula a escorrer de tinta e aplicar o luso-bofetão, porque isso, confessada mente, me anima. De resto, se amanhã me aparecer o Sr. Asdrúbal dizendo que tem uma obrinha que gostava de ver editada na língua morta, se a coisa me deixar siderado, ou apenas levemente maravilhado, não tenho grande escolha. Não vou perguntar ao Asdrúbal se ele existe, se tem uma biografia verificável, se me pode apresentar cartas de recomendação. O próprio Jorge Melícias poderá atestar que a nossa relação nunca foi amigável, e que mesmo durante a feitura desta edição apenas procurámos seguir pelos mínimos no que toca à cordialidade. Diria até que fiz questão de não lhe dar a ideia de que tinha a porta escancarada para virar as suas gavetas sobre as nossas cabeças. Simplesmente, face aos poemas que me apresentou, não tinha escolha. Mal lhes pus os olhos em cima tive de dizer que sim, que os editava com todo o gosto. A coisa fez-se em pouco mais de um mês, entre ter-me chegado às mãos, o processo de paginação, a revisão feita com o apoio do Miguel Mochila, e o ir para a gráfica. Editaria estes textos fosse como fosse. Enganado eu ou, até certo ponto, enganando o leitor. Mas sim, admito que não fazia puto de ideia de que se tratava tudo de uma esplendorosa ficção de um só autor. Ainda mais me admira a obra. E acho até que é uma felicidade que está ficção tenha sido encarada como algo que realmente se passou, ou seja, que aqueles poetas suicidas de facto existiram. Mas, para um editor que deixa para um segundo lugar a autoria em face do deslumbramento diante de um texto de cujas origens nada se sabe, este percalço não me amofina. Até me deleita. Por alguma razão os nossos livros não tem qualquer informação biográfica sobre os autores nem na contracapa nem na badana. Não é só desmazelo. Muitas vezes é preferível não complicar as coisas dando margem à realidade para que desfaça as nossas ilusões, a ingenuidade que nos resta. Sou um editor de textos. Editaria um bom poema de um inimigo figadal. Mais: adoraria ter essa oportunidade. Até do Jorge Melícias ou do Henrique Fialho teria muito gosto em apresentar textos que me parecessem excepcionais, admiráveis. Mesmo que não me dessem a oportunidades de os editar estou a torcer para que um dia me seja dado ler textos dessa categoria assinados por eles. Quanto a essas questões sobre autoria, acho que Foucault tinha alguma razão quando defendeu que “a única solução e a única lei sobre a edição, a única lei sobre o livro que gostaria de ver instaurada seria a da proibição de utilizar duas vezes o nome de autor, para que cada livro seja lido por si mesmo”. Com isto, não quer ser mal agradecido. Por isso, quero expressar o meu agradecimento ao Henrique o serviço prestado, o esclarecimento que era devido, ainda que a custo da nossa ingenuidade. Não deixa de ser igualmente apaixonante a ideia de que todos estes poemas possam ter sido criações de um único autor, um Shakespeare com os pulsos ratados, e até humilha os nossos pretensos suicidas de plantão, que envelhecem por, adiando a perspectiva cada vez mais mixuruca de que um dia, por fim, nos compensem com um verdadeiro acto desesperado. De resto, a melhor coisa que podia ter acontecido a alguns poetas portugueses seria terem morrido há uns dez anos. Talvez vinte. Estou a pensar numa meia dúzia. Não resisto a nomear dois: Luís Quintais, Manuel de Freitas. Sempre que anunciam um novo livro, não consigo deixar de sentir que nos estão a dever mais qualquer coisa.

 

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