segunda-feira, novembro 30, 2020

 

Abrir os olhos chega,
ler o jornal, arrancar-lhe as pétalas
meio animado, emparvecido
cheio de tremores, rindo alto, suando
tocando certas zonas frias, o canalha,
brutamontes, anjo, vagabundo, ah
se me ouvissem, que balanço na cadeira,
e logo dá a hora que me apetece, ei-la
toda revolvida, e lanço-lhe a mais pura pedra
atenta
, algures sinto-a quebrar coisas,
o rosto do vento, a distância deixa-me um
cheiro, ofendida, com a roupa
dela passa-se o mesmo, ora se ofende
e amua, ora dança para mim,
aborrece e encanta-me
a minha vida mudou inteiramente desde então,
não me imaginarias, o que faço sozinho
a cama faço-a cada vez mais fundo
sujeita aos temporais, e a lâmpada à cabeceira
é o meu aceno a lobos e navios
acordo inexplicavelmente para escrever isto
torno-me transparente e geométrico, estou bom
para música, risadas que não sei a que
vêm, de onde, nem o que querem,
e sou feio hoje como o Cendrars,
calvo também, em breve
cair-me-á o nariz pelas mesmas razões,
mais outra benção, e que espalhafato
com a boca bem aberta, a glândula do espanto
inchada, só me falta que a luz dela
firme um porto, naus a atracar
a velha conversa e as canções, luas
por aí, velando o cadáver da noite,
e que cheguem por fim
das margens da página aqueles que tanto
nos inquietam, águas entrando
pelas fendas, batendo, rebentando tudo isto,
águas cheias de sombras
que nos virem de vez, e tudo acabe
como na lembrança mais alta,
miúdos trepando pelo aroma às árvores,
o sentido imundo que isto faz
na outra margem, o que já se mostra
quando espreitamos,
estibordo, bombordo, entre essas estrelas
pouco importa se chegamos ou partimos
contando que perturbe as nossas imagens,
espuma, rosa avessa, indisposta,
os enjoos normais, visões que balançam
e alguns livros, a mesa, os velhos nós
na madeira para te guiarem no escuro
a cerveja destilada pelas marés
as próprias palavras, lívidas,
vomitando as entranhas,
dentes sujos, lábios salgados
e depois cada pormenor medido em meses,
cada trago mil vezes bochechado e cuspido
o polimento que se consegue no vazio
nesse mais nada que se dá à vista,
as vozes correndo de lado a lado,
fome, impaciência e a chuva sobretudo,
que tudo isso te encha a garrafa,
que esta música nos leve.

 

 

Sem comentários: