sábado, novembro 14, 2020

Artur Portela Filho (1937-2020)

 


Em tempos era atribuição dos homens de talento dar corda ao mundo. Se a vida revelava pouco interesse, um tipo começava por interrogar-se a si mesmo, dirigir-se acusações, pois mesmo na ausência de luxos, regalos desses que desembaraçam o juízo de excessos metafísicos, e mesmo na falta de orgulhos do poder, um homem reclamava a sua independência numa vaidade interior, e ao findar os seus dias alegrava-se se pudesse dizer: “tudo gozei, pela imaginação, num instante e de um só sorvo”. Artur Portela Filho tinha essa grande exigência consigo mesmo, essa que dá origem a um estilo profundo, ao cultivo exasperado das qualidades pessoais, a desses homens que, em algum momento, aspiram a deixar uma obra destinada à nutrição augusta da humanidade. Ele tinha com Eça de Queirós um diálogo vivíssimo, o que o levou sempre a praticar o seu espírito por escrito na margem que se opõe ao regime dessa prosa antiquada, mesmo se enxuta, a dos moralistas caturras de cada tempo, que mesmo se esbofeteiam um assunto, e se lhe arrancam até ao último grito, horas ou dias depois a coisa esmorece. O teste, assim, é fácil de fazer: vamos lá ver e confirmamos que cada palavra se tornou como um carvão apagado...
Hoje, o público já nem faz ideia de nada. Estar bem informado, nos nossos dias, equivale a viver com uma tremenda dor de cabeça, o juízo ferrado por um enxame, numa confusão que nos arrasta para o fundo. “É claro que o público passa bem por multidão, se o não quisermos olhar nos olhos e não nos interessar o que se passa por trás dessa fileira compacta”, escreveu Artur Portela Filho, numa das suas mais antigas crónicas. Ele que foi um infiltrado da literatura no jornalismo, tornou-se uma das suas figuras mais notáveis por olhar o seu público nos olhos. E que grandes os tinha. Que capacidade de esmagar com um apertar lancinante das pálpebras a mosca que se preparasse para trazer este ruído de asas no ambiente de morgue que tomou conta das redacções. E o que mais custa é que a falta que jornalistas como ele fazem nos jornais nem deu para que a sua morte fosse noticiada com o tipo de fanfarra estilística que lhe devia ter feito justiça. Os obituários eram umas carpideiras dessas que cobram por cada lágrima. Reuniam apenas os poucos factos, fazendo dele mais outra baixa nessa guerra mais que fria, aborrecida, a da pandemia. Assim, davam conta que Artur Portela Filho, romancista também, tradutor e publicitário, morreu aos 83 anos, vítima da covid-19. Que tinha sido hospitalizado em Abrantes, com uma pneumonia a que não resistiu. E que mais? Pouco mais, quase nada. Um zumbir de mosca sobre um corpo duro e de tão difícil digestão.


 

1 comentário:

bea disse...

Enfim encontro alguém que também sente ser devido aos mortos algum tempo, uma notícia e até tempo de antena se haja nos arquivos da RTP alguma coisa deles. Mas não. Mesmo se foram da casa dá-se a notícia brevemente e dela se sai com pressa. Para onde se corre quando não há tempo para mostrar alguma coisa de quem partiu e tanto deu aos homens?! Não sei. Parece-me sacrilégio, o silêncio (ou o quase silêncio) é uma profanação da vida que se foi.