sábado, novembro 07, 2020


O mundo foi outra das minhas ideias.
Mas passo mal. Dores de estômago. Algum
anjo negro que vem segredar-me isto e aquilo,
lembra-me alguém, comia livros, as letras
entre os dentes, cabrão do velho,
com dois folhetos e um soneto no bolso
(toda a sua bagagem literária) - gostas?
roubei ao Brandão, mas shiu!, estão em
cima de nós, a vigiar-nos, disfarça e segue:
aqueles olhos perdidos, lendo mesmo
no escuro apontamentos baixinhos
sobre a vida, pássaros misturados,
um vento mula, ensaiava o seu sonho e eu
meti-lhe a sela, estava doente disso, muito 
interessado, boémios, borgas literárias,
gosto dos escribas estendidos em letra
de forma como nas suas covas, espreito
e isso abre-me o apetite, nascem-me
por sorte nos bolsos, vê só estas
duas pequenas laranjas meio des-
cascadas, parece que suam de medo,
fica um travo forte e dourado, e o quarto
cheira a bosque e a uma pobre cozinha,
isto e café é o suficiente. Insisto comigo.
Os livros estão por aí como estranhos
trocando notas em túmulos dispersos
numa paisagem que não chegou a secar.
Também não sabem dizer quem a pintou.
Mas o que me espanta, se te interessa, isto
estou aqui neste momento e não acredito
em nada, mas amanhã, graças a Deus,
estarei para ali e serei outro, nem imagino
aquilo que me passará pela cabeça, mas amo
a desordem, a vida que nos foge, e como
não tens o que esperar, nem o eléctrico
ou sequer o café, estamos aqui como rãs
num charco, a fingir que as revoluções
nos encantam, que as combinamos
como se fazia dantes, pelos cantos,
e porque já não esperavas nada, eis que
tiram a lua dum saco, toda desfeita,
olho negro, chorosa, mas o ímpeto da gaja
a dizer-nos que não podemos desanimar,
que isto ainda vai, que um dia, porra,
que não nos atrapalhemos com o morto,
ali, coberto por um lençol, a deitar aquele
cheiro adocicado, a cadáver e aguardente
(obrigadinha, Brandão, fico-te a dever)
que não nos incomode, que o espírito estará
de volta, em breve, e o jornalismo, a arte, 
até as mulheres, a bruta da paixão, e ninguém
então há-de escarnecer de nós, destas ocupações,
delicados prosadores, confessores malucos,
vá Rui, seja em que diabo de lugar estejas,
deves estar-te a rir, que agora sim, somos
muitos, mil cento e onze, vamos, vamos.


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