sábado, outubro 03, 2020

 

Esse ódio às mulheres é um furo que se vê em alguns, um gesto desesperado de quem não sabe livrar-se de si, de quem lambe o seu desastre, a falta de um nome que traga à boca outra coisa, há um rosto de mulher nessas obras vivas, desenho feito num traço que mal se reconhece e alucina, depois o que lhes resta, que outros buracos além desse do tédio, de que raivas pode arrancar-se algo como um ritmo, uma música, vê bem que esta nova geração, com todo o seu ardor fingido, nem a decência teve de apresentar um só suicida em tempo útil, formam bandos, servem-se esses caldos de vitela, das mulheres também não se pode esperar maldades dignas de ir buscar antecedentes nas mitologias, a cidade não é já sinónimo de qualquer espécie de vício, nos traços de quem busca o seu reflexo no papel tendo desistido dos espelhos, da sua duplicação fria e inconsequente, deixou tantas colecções, a apreciação das estampas da vida íntima flamenga, os primeiros ensaios de um erotismo púdico com putas com mais genica, a preto e branco, e agora tem numa caixa de sapatos fotografias de assassinos, nem só dos mais célebres, e não é que os admire, mas tenta ler neles esse detalhe denunciador de um ânimo capaz de levar as coisas até ao fim, a maioria mata mulheres, e não por ser mais fácil mas talvez porque só esse vazio seja digno das lendas, as verdadeiramente adoradas são as ausentes, a esses que se contentam com o ódio falta a audácia, e de qualquer modo arrastam-se por um território que se desagrega, que se desenvencilha do resto, e, ilhado, que frio faz, que ventos, e o delírio de se ter um idioma inteiro para si, sem saber que sentido ainda fará, se poderá um dia explicar-se, depois há essas justificações desordenadas, febres que queimam até ao último pudor, dás por ti entre os danados, essas figuras infames, vidas que se erguem das linhas que outros riscaram, que a decência não deixou que assinassem, os versos repudiados tantas vezes, apurados, vertidos de umas línguas para as outras sem se saber ao certo a origem, descendem numa hereditariedade que não passa de um sopro, aguardando alguém que passe a noite em claro, olhares trocados entre rostos de loucos, gritos que desfiguram, de criminosos nem conhecidos nem propriamente estranhos, como abrir a correspondência devolvida de algum desses que acabam com o mundo, sentir-lhe as tremuras, certos olhares arruínam de vez o centro, e não há agulha magnética nem rosa dos ventos que nos safe, e cada mulher é um susto, o terror das coisas que são capazes de nos dizer.


 

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