quarta-feira, outubro 14, 2020



a minha lista, às cinco da manhã
velhas dores desencontradas, ecos
a praga que me levava e trazia
eu mostro-te: o frio, a linha e as noites todas
se a morte ao menos se deixasse soprar
se a canção fosse mais longe
com estas mãos tocaria um concerto
que seria aplaudido no inferno
então dormíamos em qualquer lugar
após o banho, o café, as ideias
sombras de pássaros, o chilreio matutino
a água escorre ou pinga, afina com a luz
estão aí, dos cemitérios antigos, alguns
com os seus gestos fora de tom, 
vês o sol, insistente, estúpido e doce
já não te dá é a vontade
de engolir um canário como dantes
mas aos poucos a vida basta
ouve-se a melodia do fundo nas coisas
o gosto do prato nos dedos
a faca rasgando os pontos de um fruto
expõe-lhe a polpa, a armação suave
o brilho em redor do caroço
deixa-a assim, catedral odorante
em breve sentirei falta do monstro,
dos olhos roídos de não os fechar nunca
de trabalhar a maldição como um poema
a maçã não será já desgraça suficiente
a rosa vai voltar a aborrecer-me
quando nada neste mundo
pareça capaz de se despir
deixar numas poucas palavras
um sabor que arrase a boca
sentirei falta do fundo, da sensação da terra
entre os ossos, meses depois
a mesma dificuldade em engolir,
e de tudo isto restará enfim uma prece
interrompida por uma mosca


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