domingo, setembro 27, 2020

 

Ervas emaranhadas prendem, laçam um odor de carne levemente apodrecida, o pássaro negro da canção que acabou, o tiro que debaixo do olho ainda o deixou murmurar o nome dela, eu teria preferido um pássaro de corda, uma imitação mecânica que parodiasse a sua inclinação nostálgica, mas dizer adeus até ao fim é das coisas mais tocantes, frases que se dizem sem mais, mas que quando são tudo o que fica ficam ali a afinar um eco como quem limpa uma arma. Já antes ele sabia que em vez de uma rosa, fresca, podia descrevê-la, não era só um apontamento floral, era uma alusão ao sentido que levou a querer dedicar a alguém esse gesto íntimo da natureza, podia também desenhar um figo, escuro, raiado, primeiro colhido, depois aberto, tudo em cantos de folha, antes disso, sempre me tentou convencer a mostrar as minhas coisas a essas mulheres que trabalham nas cafetarias, que aturam de tudo, que conseguem ensinar-te mais com um esgar, num vinco da testa, ou torcendo o canto da boca do que qualquer crítico, gosto quando eles se calam, ficam a olhar-se, e a história parece suspensa, suponho que haja a hipótese de não acontecer nada. Se se pudessem manter assim, encontrando-se ocasionalmente, dois estranhos, tocados pelo ambiente de fábula, de coisa ouvida ao longe, um romance cosido a rumores, a diluída doçura dos novas que trocam os velhos, mas voltamos para casa dele e eu tenho pena, o diabo arrasta o sofá, o tempo coça-se, ele confessa que gosta da mulher do tipo que vive em frente, gosta quando beija o outro, diz que quase consegue senti-lo, vê-os à noite, lê-lhes os lábios como quem lê um conto de Raymond Carver. A dor faz o resto, imagina o coração de outros homens, morde-os como a um fruto. Basta-lhe a distância e a memória da imaginação. Até perdermos a prática, isto parece o suficiente. Só depois é que a realidade se impõe, como um paliativo. Primeiro fazemos tempestades, somos donos delas, mas depois é o deserto que aos poucos vai entrando em nós, um grão aqui, o outro por ali, a mão cheia que alguém nos deixou na gaveta. Quando apanha no rádio a velha canção, sente o cheiro negro do pássaro como um amuleto atravessado pelas ervas, pensa como antes abria o jornal e sentia um abalo tremendo entre as paredes do quarto só precisando de ler duas ou três linhas, bastava-lhe pensar em todas aquelas freiras no naufrágio do Deutschland... Quando era novo escreveu sobre freiras, esses seres indo pela beira deste mundo, sem receio da demência, uma fome de paixão que ninguém nesta época tem condições de entender, mas depois perdeu o fio. A fé exige um empenho absurdo, dizer-se a si mesmo coisas terríveis, e apenas para aguentar a narrativa. O céu cansa-nos mais do que tudo o resto nesta vida, até do que o inferno. Há que sustentá-lo com todas as forças, ao passo que o inferno, mesmo devorando a carne, atende a nossa necessidade de queda, de um terror que nos livre de todos os nomes.


 

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