sexta-feira, junho 26, 2020


Deixemo-nos de merdas, não precisamos do verso para nada. Tornámo-nos o nosso próprio guarda prisional. A rispidez já não está ao nível dos castigos corporais, mas seja como for é duro, desgasta o sentido de si, ataca-nos nessas coisas que nos servem como instrumentos de navegação. Não faças figuras, comporta-te, vem aqui, meu menino. Que grande puxão de orelhas! Os poetas de que me lembro melhor tinham vergonha, e isso bastava-lhes, era uma orientação geral, um sentido profundo que lhes dava capacidade de recuo, de enfrentar condições dramáticas no campo de batalha, e mesmo que deixassem morrer alguns homens, salvavam outros tantos, e asseguravam o dia seguinte, bom para a desforra, mas agora, passa-se de afiar um galho, experimentar uns golpes no ar, juntar umas milícias de desocupados, e logo o mais importante é a insígnia, fardas, um jornal de campanha, além de uma série de estúpidas reivindicações. Ainda gostava de os ver seriamente investidos, que tomassem conta uns dos outros meses a fio, no mar, nalgum deserto, num território selvagem desses que nos deu a ficção quando o mundo lhe dava vertigens, provocava insónias diabólicas, durante séculos não se dormiu. O Miguel Mochila sabe-o, e falou-me na escola dos que se separavam primeiro do próprio nome antes de se desfazerem de si mesmos. A impressão que muda o sentido de um texto (como do vento) não se deixa agarrar sem mais, não viva pelo menos, dá uma luta desgraçada, e quem perde as estribeiras, a rasga, puxa-lhe as tripas para fora, só aguenta nas mãos a sujeira, uma ideia do esforço, de uma coisa mínima que afinal tombou fazendo estremecer a terra, quem o fez, deita-se, os céus fazem ideia do que foi aquilo, vou andando com algum livro nas mãos, o corredor quase parece igual, mas um tanto mais estreito, mais longo, obriga a um certo esforço, e o meu antigo quarto de dormir parece que se perdeu, da última vez que lá estive tinha-se erguido um carvalho no meio, virou-me as gavetas, esmagou a secretária, também me faltava o tecto já, o quarto dava directamente para o telhado, mas agora nem sei dele, imagino que alguém se tenha esquecido do livro nalgum país estrangeiro, ou num desses lugares onde este tipo de descrições e registos só aproveitam à má fama desses párias que se fazem publicar, nem um leitor se encontra que tenha tão pouco interesse pela sua vida que aceite este despropósito, esta desproporção, esse que lê como quem atura o enlutado e balbuciante papagaio de um vizinho que se finou, ouve-o repetir do defunto algum bordão, questiona-o intrigado enquanto esfarela o tabaco na palma da mão, ajeita-o na mortalha, depois de a ter virado sobre ele, enrolando, passando-o pela língua, acende, o ar balança de regozijo quando solta o primeiro bafo, e o papagaio tosse, ou imita. Devias ver isto a aquecer enquanto lhe implora detalhes e o bicho se fecha em copas, mas, para evitar ficar sozinho, entre as penas, gere um exercício enigmático, um novelo de frases que espicaçam o outro, um estrebuchar de pobre diabo, parecendo afiar o bico na carne de alguma revelação, um tesouro, quem sabe, é a sorte que lhe resta, o imaginar-se que partilhou azares com algum pirata, julgo que para alguns de vós puxar por esses fios soltos, tudo isso que estava bom para a infância, esses tempos em que a imaginação ganhou mais músculo do que a lógica ou um sentido qualquer de preservação, suponho que tudo isso seja para vós matéria mitológica, e que ainda vos dá o prazer de a saborearem como miúdos. É por aí que é preciso recuperar os sentidos.

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