terça-feira, junho 16, 2020


Sujo, cheiro a morto, tenho preferido isto, evocá-los assim, sem me lavar, parece que está mais alguém comigo, tenho coceiras que alastram como pensamentos asfixiantes, não sei bem onde um se coze ao outro, os dias tiram-me estranhos retratos, tenho uma ferida, uma gangrena que me exige sacrifícios rituais, arranco peles, frases vivas, impressões puxadas a frio, parece-me que, debaixo da pele, os ossos não aguentam a luz. As letras têm o peso de ferros, arrastam os pés, as correntes entre elas ajudam a fazer um bom barulho, sou o mais ruidoso que posso, busco entre as ferramentas, espalho-as, tudo em contornos brutos, rabos à tona, um bater de barbatanas na água, aquece-me a prosa, as copas do arvoredo ondulam, afixo em letras graves avisos absurdos, a ver se não me espreitam, aqui, um sítio onde os anjos se recusem a entrar, mesmo os obstinados, e a razão por que bebo tanto é que tento dissolver o girassol que se me pôs na garganta, as pétalas morrem, enegrecem e só depois consigo cuspi-las, leio biografias de pintores, os que menos se importavam, com a corda da época a estrangulá-los, vê como este ainda lavra a tela, aquece-a com o hálito, viu qualquer coisa, vai deixar-te morrer à fome se não conseguir puxá-la, os nervos lacerados, a tinta passando a língua sobre os lábios lacrados só piora, estão ali uns séculos perdidos, aproximam-se os apreciadores, um ou outro negociante, mas está fora de questão, não tem nada que sirva de conforto às bestas, talvez algum desgraçado pressinta que é com ele, quando o mundo recobrar os sentidos, uma camisa de noite exumada, um apetite alimentando-se de si mesmo, com aquele corante de asas esmagadas, a sugestão de uma paisagem cuja carne foi já roída pelo delírio de tantos sóis, o cavalete desfeito, a memória de um talento em que se encostar, uma mancha que te diga onde bater com a cabeça até reavivar o antigo brilho, uma chama, uma expressão firme para esperar o fim.

Sem comentários: