domingo, maio 03, 2020


Quando já não esperávamos, vimos a saber coisas de nós próprios ou de algum antepassado a quem, por razão de uma enfermidade absurda ou por o azar se lhe ter aferrado com uma sanha prodigiosa, nos sentimos ligados, muito próximos, não que pudéssemos fazer alguma coisa por eles, ou sequer por nós, mas não deixa de ser grato ouvir falar de si na terceira pessoa, no tom que se reserva a esses de quem apenas se diz que conhecem os nomes dos pássaros, de tantas plantas, que usam uma linguagem inconscientemente sensual, por isso, perdoem o hábito de se transferir, trocar em pequenas ficções o que lhe acontecia, quem se lhe chegava. A uma mulher nova, que não estivesse de sobreaviso, dar-lhe o nome de um mês, uma cidade que nunca se viu, antecipar-se a tudo o que possa desenrolar-se, até para salvar a pele, esquivar-se, ser um amante desses premeditados, ostensivo nas declarações, frio, capaz de se desinteressar como quem vira outra página de um romance enfadonho, na esperança de alguma peripécia, mas, genericamente, se lemos é por reconhecermos que estamos em falta, queremos o juízo de outro a colar os cacos da vida, a respirar-nos ao lado, desafiando os nossos sentidos, abalroando-nos, e há mesmo um desejo de ser o outro quando se toma as palavras da sua boca, o peso particular, essa raivosa expectativa, a frase segue rouca, cheia de cuspo nos cantos, asmática, a resvalar ameaçando perder a voz e o juízo, escuto-o perto de mim, não que esteja, mas do balanço da hora, parece. 2 horas da manhã, cela dos condenados do costume, e antecipo-me, redijo-lhes obituários, leio-os alto, dou-lhes outras vidas, enfebreço-os, mas se houvesse morte, que poupança de sofrimento não se faria. Bandos sobre bandos, unidos num fôlego sem futuro, desmontam o inferno, esse que é a união dos esforços da cambada de imbecis de que nos vemos cercados, e que nos isolam, às vezes com espaços e através de tempos sem nenhum sinal de misericórdia, querem-nos desconfiados, mãos nos bolsos ou dentro da pele, a sentir os ossos, falando sempre de outra coisa, trazendo à baila irritações cuja origem não nos é possível determinar claramente. E, às tantas, deixamo-nos convencer de que nem somos de cá, apenas visitamos a realidade, passamos perto, numa órbita qualquer, e ouvimos falar dessas coisas que tanto vos comovem. Inclinam-se terra e estrelas para as coisas que contamos, algum fôlego correndo, mijando-se pelas pernas, e a gente treme e reza, se me dão papel, ponho-me a sonhar, as coisas vão-se amontoando, dossiers a abarrotar de notas e esboços, os mastins da imaginação farejando tudo, para devassar a constituição do real. Por aqui, "os sinos tocam debaixo de terra", encontram nos ossos um desenlace, um meio de trazer à superfície, sob a forma de tremores, antecipando os pesadelos que iremos roer pela eternidade fora, dando música aos vermes. Estudar nos dois ou três que nos falam desde uma língua perdida, e que remontam às origens a ousadia desta porra degenerada, os planos de um mal que pudesse ter feito alguma diferença, ou as histórias de cabeceira que contam, com a voz embargada, esses que se deixam por aí a fazer a cama num piano, em exercícios irritantes, cheios de veemência, esses que nunca saltam uma nota e estão sempre disponíveis, só tem mesmo a roupa que trazem no corpo, a prosa desastrada com que contam trivialidades ou os acontecimentos que os transtornaram para sempre, e que, de um salto, se põem a caminho, fazem-nos companhia na hora em que um bom destino é qualquer coisa que nos deixe ir pelo corrimão, sem voltar a erguer a vista sobre esta terra que nem um nome merece.

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