domingo, maio 03, 2020


Desde o início provido dos sacramentos
de morte
jornais, tabaco, aguardente
cubro as superfícies, torno-as vivas
devolvo-me um aceno apanhado num reflexo
nesse pobre retrato onde nem a sombra é viva
e as árvores pouco se mexem
mas do fruto um peso decidido vem
saber dessa mão, a volta que lhe dás
e de cada queda a colher é cheia
estende-se abrindo a sílaba
para que dentro se precipite a ousadia
da paisagem toda
o que debaixo da unha do verso respira
na afinação cósmica do trabalho relojoeiro
este afundar-se rodando como um prego
na doce pobreza que nos define
na translação dos quartos, a mulher
num sono leve que nos revira
ou terrivelmente nos falta
pois se a memória lhe perde o sabor
nós já não, nunca nos deitámos juntos
e mesmo que à pressa agarre o que possa
me raspe quantos fósforos ou estremeça
de um gotejar trôpego
não resulta
não há, não vejo tradução, o chão falta-me
e as notas que tomei mal se deixam ler
a vida torna-se antiga, frágil, sem gosto
alguém mo disse, de como assistem
ao seu próprio mistério os velhos poemas
inúteis do ponto de vista ritmíco
tão feios antes orgulhosos vibrando
de terem tocado na corda a beleza húmida
mas se nem passos de gigante
fazem ceder as frases
na canção que se prendeu as dádivas eram frias
não a ponta só mas toda a língua ardida
e que baixo isto, que frio, vê-se a respiração
pelo meio os ramos desenhados a árvore cresce
num sufoco reclamando de volta
o fruto comido lá atrás.


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