A realidade dá um trabalhinho danado. Não adianta estar com atavios e atalhos. É preciso andar-lhe sempre de volta, não deixar que o caldo assente ou engrosse, é preciso mexer com a colher toda, às vezes meter nela a mão até ao cotovelo, ir às profundas, virar-lhe o leito, ver o nível da cozedura da pedra. Nestes países mornos, tantas vezes deixa-se esse panelão dias a resfolegar, as couves já sem viço ao lume, com ar degolado, um pobre ambientador de taberna. Nem a prodigalidade do sol, esbanjando os seus dons, nos dá grande alento. Antes fica uma moleza persistente, um ambiente tépido, que aproveita mais ao caruncho. Do mar mais largo a esta sopa abatida, perpetuamente requentada, o que não se extinguiu foi a bazófia dos pretensos heróis, uma nação-mirim sempre à bulha por nadas, e, sem grandes oleiros, o que não falta é quem ande à cata dos velhos cacos a colar e refazer como lhe dá jeito a mitologia lusa. Nisto, neste virote folclorista, o sentido da História passa-nos, como dizia o outro, pelo meio das nádegas. Andamos aí numas algazarras, feitos com uns reis imberbes, e o reino é uma carroça indo pelas aldeias, a impingir umas bugigangas milagrentas. Misteriosamente, as grandes rotas, da seda e do catano, todas vêm aqui dar o nó. Não podia, pois, deixar de ser este um viveiro de personagens muito próprias de uma lândia em voltas de carrocel, com música de grafonola a condizer. Para vir ver, é giro. Como quem passa uma tarde no aquário, a ver esta atlântida encalhada, este meter água por todos os lados, este número do naufrágio em reco-reco. Mas para se viver é duro. Emburra. "Em contrapartida, já cá se sabia que para morrer, devagar e depressa, não há como a nossa terra. Oh, gatos pingados de maravilha!" (Cesariny). E este embale que a gente por cá toma, vício de quem conta com um baloiço para secretária, condenado a ter balanços de maré a intrometer-se nas observações e notas, serve para se amirar as espécies nativas entre as quais nos vemos entralhados. Ora, se há quem tome um gosto das coisas e devolva esse gosto naquilo que faz, no que toca aos livros, na empresa de pôr em dimensões de bolso e airosas os horizontes portáteis, não falta quem, de tanto beber água no bidé, se convença de quem tem o segredo das fontes. Se temos o editor glutão, o que vai a todas, rouba dos outros, vive à porta, de dedo na campainha, com o cartãozinho à espreita, à espera de uma desgraça, e não pela paixão dos livros, mas para secar, para empurrar à balda para letra de forma, enterrar em mercadoria, livros como pequenos túmulos, enterros de papel, se temos também os cartéis da subvenção vitalícia, sempre metidos nos institutos, a tentar sacar nos programas de apoio à coitadinha da literatura, literatura que, lá está, depois também não sai da fila da sopa, vamos tendo também já uma dinastia dos baldrocas da subversão, com as fisgas do marquetingue, esquadrões de passaredo a ensaiar a banda sonora à hollywood para ataques de pirataria. Mas sempre-sempre com margem de recuo, para, de súbito, e em inversões de burguês farsola, este barba azul poder vir queixar-se de que a flotilha da coroa lhe anda a depenar a galinha dos ovos de oiro. O Oliveira, que meteu o Orwell no sovaco há anos, que anda sempre com uma frigideira a mostrar com que denúncias do sistema se fazem as melhores omeletes, sem grandes voos nesta língua, na base só de importações garantidas, dá a pata da galinha para o beija-mão aos seus tristes acólitos, e anda aí há quarenta anos (mas podiam bem ser quatrocentos no regime do agarrem-me que eu vou-me a eles) numas fanfarronadas de quem julga que tem a revolução enfiada no galinheiro, e vai lucrando enquanto serve essas porções pré-embaladas, hóstias para o mal de consciência contemporâneo. Mas o melhor mesmo, para se ter uma noção acabada das patifarias do personagem, é ir ver como lhe tirou a ficha o João Pedro George nesta crónica de quatro páginas que chegou hoje às bancas, na revista Sábado.
quarta-feira, abril 29, 2020
Luís Oliveira, o Barba Azul
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