sexta-feira, abril 24, 2020


Isto são fragmentos lidos em voz alta de um romance recusado inúmeras vezes, pelos editores todos, pelos amigos que já não querem ouvir falar na coisa, eu mesmo já me livrei dele tantas vezes, deitei pela janela, aos capítulos, em dias diferentes, reguei-o, puxei-lhe fogo, deitei ao rio, e o desgraçado volta, palavra por palavra, não me dá outras, se risco até rasgar as folhas, os personagens cruzam-se lá em baixo, gritam-me das escadas, tenho uma que nem mora no prédio mas toca-me à porta para pedir salsa, merdas assim, na rua, pedem-me as horas, no autocarro, vários levantam-se para me dar o lugar, como se fosse uma grávida, a vergonha umas vezes, outras sou eu que me deixo embalar pela hipótese de ficção, descomponho-os, pego neles pelo colarinho, sacudo-os, dou-lhes umas taponas, logo sinto cá umas dores de estômago, e nas cruzes, raios, como a espinha de um livro que se descosesse, mas por muito que lhes faça, por mais que abuse, tudo é perdoado, voltam como amantes obsessivos, em pedaços soltos e desconexos, fúrias delirantes, sepultam-me em cordialidades, é um mosto, uma coisa acre, convulsa, finjo que não ligo, nem é comigo, como quem vê passar uma procissão, esse luto que sai para desabafar ou, em dias piores, desancar alguém, ao acaso, dirigem-se a mim, em todas as ruas sou cúmplice de uma porra qualquer, se algo se passa não me deixa sair de fininho, mãos nos bolsos, oiço o meu nome por tudo e por nada, cada cabronice, cada sarilho, e lá estou eu entre o rol das testemunhas, a menos que esteja com os réus, tenho uma camisa a meias com outros dois gajos, dormimos sobre uma mesma mesa, tudo se confunde com o relato pela rádio, já com décadas, de uma qualquer guerra imaginária, um conflito cancelado a tempo, dizem que nos poderia ter devolvido o mundo, projectam todas as fantasias nesse embate que tinha tudo para acontecer e depois foi desmarcado, mas parece-me que só a mim me chegam notícias da forma como evoluiu, para lá de toda a sanidade, como uma composição musical que se aproveita de tudo, o que houver serve, consumindo todos os ritmos, assim, também me rendo, faço de tudo para evitar as linhas de acção centrais, ponho-me à margem, como um escriturário, vou redigindo numa caligrafia miudinha, cuidadosa, típica de um covarde, de um revisor de provas, imitando um desses seres que trocaram o espírito por picuinhices e que se empregam em funções menoríssimas, estou a pensar num em concreto, um dia mato-o e fico-lhe com as roupas, uso uma cabeleira, as cãs dele, o sorriso imbecil, continuarei redigindo o seu caderno de ofensas recebidas, agravos, abusos de toda a ordem, e a coberto da exasperante minúcia dos cuidados a que me darei, hei-de exercer o ofício de rogador de pragas, e não deixarei de cuidar da mãe dele, mulher com quase duzentos anos, borrifo-a, troco o ambientador, prosseguirei nas funções de confessor-geral desses literatos amorfos, cheios de si, absolvendo-os das pulhices, das pobres intrigas de que se ocupam, viverei deliciado com a minha farsa, protegido pela fé deles no cura que lhes lê de volta os seus livros de horas, rindo-me à socapa, como todo o delator, depois só repito as indicações e ordens desfavoráveis à causa, rezando eu próprio para que se danem todos, o quanto antes.

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