segunda-feira, maio 04, 2020


Dá-me qualquer coisa de beber, preciso de ferver estas merdas que se me agarram, tenho a pele como um mapa, ameaçando desfazer-se, de tão aberto, de tanto lhe implorarem uma orientação que faça sentido disto, esta porra, linhas fundas como rugas, o leito de rios secos, países já defuntos, desaparecidos, anexados, os antigos tesouros devassados, é uma ideia de aventura que se perdeu, hoje, estes daqui só discutem a dieta, e pouco lhes interessa as advertências dos tipos que começaram por imitar, quando se davam ao trabalho, quando as dificuldades não lhes metiam tanto medo, não reagiam como um bando de covardes arranjando-se com desculpas, de que adianta que o outro insista que "um escritor deve ser lido e não visto", ou que nos adiante aquele que o melhor, entre tantos carrascos inexperientes e desajeitados, o melhor será ir já antecipando o fantasma, enquanto isso, talvez por causa do frio, sentimos os pulmões dilatados e uma fome espantosa, temos de nos recolher, de nos sentar nalgum lado, não é verdade?, numa cadeira que aguente connosco, tem de haver uma certa boa vontade, podemos ficar à espera um longo tempo, a preparar o silêncio, nesse estupor da língua, isto até que o golpe frio do aço verbal se insinue, para logo rodarmos a faca nessa massa inchada, orgulhosa, enquanto isso, apuramos mecânicas musicais, é a isso que teremos sempre de voltar, à música, mesmo que o ouça já barafustar, a pele fica-me demasiado larga, lá vai ele, a falar sozinho, gravando ordens de si para si mesmo, frases curtas, frases bruscas, boa parte incompreensíveis, devaneios, grunhidos, fala-me do seu projecto, compara-o a autopsiar um colibri, visualizo tudo isso, com a lua a cair fora de lugar como no haiku, um tipo rasgado aqui e ali por surtos de precoce senilidade, devorado por remorsos, por se ter sentido, na sua juventude, tão confiante nos seus poderes de percepção, tentando resgatar as páginas da única coisa de jeito que escreveu, um romance apaixonado sobre uma mulher que o deixou pouco depois, e que ele, supondo que assim se vingava, queimou, como se fosse a ela que roubava a melhor hipótese que tinha de ser lembrada, tentando agora recuperá-lo, pondo um preço na alma, cada vez mais baixo, desfazendo-se dela aos poucos, incomodado com tudo, não se deixando desviar ou seduzir por qualquer sugestão nova, um parágrafo inusitado, recusando tudo o que não seja um eco perfeitamente coagulado, convencendo-se de que, mesmo que o original estivesse definitivamente perdido, seria capaz de criar ao menos uma reprodução bastante fiel, tornar-se um imitador escrupuloso, voltar a encontrar através da memória de um texto perdido a melhor ideia que fez do amor.

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