segunda-feira, maio 18, 2020


Numa casa cujas regras é a estupidez quem as dita, não se pode esperar que a inteligência faça a sua vida senão de forma clandestina, e por mais empenhada, ou até subtil que seja a tua persuasão, o fracasso será a única história que tem para contar, ainda que o faça com uma serenidade quase heróica, uma alegria de contemplar o passado como algo de que é bom ter-se livrado, afinal, mesmo que não fosse de se esperar que os anos tratassem de deixar o lixo lá fora, pronto para ser recolhido pelo camião do esquecimento, mesmo assim a vingança poderia servir como um longo epitáfio musical, um banho de sangue antes de se sair de cena. Mas para isso seria preciso que te desses essa tarefa e soubesses coagir-te durante uns meses, pelo menos, a cumpri-la com esse rigor que algo que se retoma a cada dia extrai de nós. Simplesmente falta-me o interesse, e qualquer ataque, por mais selvagem ou metódico, fulminante ou exemplar, seria um acto de crueldade que acabaria por me ser reconduzido. Desde logo, porque ao ser levado a pensar nisso, não me lembro de que estivesse lá mais alguém. A partir de um certo ponto, um excesso de consciência apenas nos garante que só uma igual medida de solidão poderá rever as provas, ou mesmo ler com alguma compenetração e perceber, para além do que disseste, isso que é essencial e que falhaste na hora de o vincar claramente. Lembro-me menos da verdade por si do que como um desvio de ficções que se me lançam ao caminho, a vida, afinal, tem um modo bastante desonesto de baralhar as cartas, e eu habituei-me, até por inércia, a interpretar os sinais, tornei-me um repórter desses que, à falta de personagens de carne e osso que possam conferir algum sentido de urgência ou mesmo vertigem à história, puxam do caderninho e pedem ao vento declarações, entrevistam os seus próprios desvarios, dão aos objectos, na sua relutante expressão, no seu desinteresse em prestar testemunho, um pequeno empurrão, e assim se sabe como as coisas deviam ter-se desenrolado se a vida tivesse tempo de desenvolver uma admiração pelos romancistas russos, saber-se-ia como à corda faltou o vigor e até a convicção para ser piedosa com aquele que já antes tinha tentado matar-se, como o fez depois, à fome, sujeito à depravação, acabando por se despedir numa longa noite dessas em que nos entregamos ao magnetismo do que não nos deixa saída, e, assim, interessa-me a perspectiva dessa corda que não provou ter carácter e estalou ao sentir-lhe a pulsação contra as fibras. Também gosto dos frascos de comprimidos, dos reguladores de acidez, atenuantes disto e daquilo, gosto desse tumulto indigesto à cabeceira, esses sinais de um sono que não sabia manter o saco às costas e fazer a travessia de uma só vez, mas tinha de ter a sua própria novela, uma obstinação de porteira praguejante, aproveitando tudo para puxar do rosário, até para se envolver em discussões absurdas com as outras. O dia seguinte quer lá saber, e, por isso, dá jeito encostar o relato à vitalidade desses que dormem até na véspera de batalhas impossíveis, assim, a ele peço fiado, dá-me de outro a convicção para encostar a página ao fôlego de quem primeiro rasgou estes caminhos, e então eu oiço-me, como um bêbado repetir um arranque como se fora uma canção dessas que já ciscaram céu e inferno, e sem conseguir conter-me dou início à história dos meus primeiros passos por esta vida, preciso sobretudo de recomeçar do zero, e aquilo a que me nego é a levar a coisa para lá de um certo ponto, saldar este fiasco, pôr a limpo os antecedentes desse ódio que me embalou desde sempre, explico-me mal, dou os sinais de uma terrível ressaca, estando tão longe do amor, a escutar o seu rebate em terras longínquas. Se nos faltarem motivos desse quilate, temas nobres, por esta altura podemos sempre virar-nos para o desastre de uma forma qualquer de abnegação, algum tipo de privação, a fome de Hamsun é um exemplo, uma dor de estômago que fale rispidamente contigo, uma úlcera mais doentia e malévola que uma possessão, como a de Bernhard, destituindo as coisas do seu senso, emparedando o mundo no seu ridículo cerimonial, o desastre, quando se pensa nisso, quando se pensa como satisfazer algum apetite podia fazer a diferença, é como logo nos damos conta de que não se consegue comer o raio de um bife decente nesta terra, e, assim, nos entregamos a alguma busca inconsequente, agora que a paixão já não move ninguém, e perder tempo com isso seria como esperar do leitor que acompanhasse a trama com um zelo e um sentido do decoro vitorianos, e é por isso que ninguém insiste na épica, já que os próprios leitores, como ratos, conseguem fazer-se embarcar e aos seus juízos, e enquanto te diriges para algum porto da antiguidade, no porão, roem tudo, infestam os víveres, acabam por levar a tripulação a um motim, e só resta esse bote em que te largam com os teus cadernos, enquanto tiras à sorte um destino, e te preparas para naufragar num juízo demasiado mudo, instável, numa derrota tocante que, na melhor das hipóteses, talvez possa deixar-se acompanhar ao piano.

Sem comentários: