terça-feira, maio 26, 2020


Farta deste pardieiro, de mim, até da cidade, que nunca esteve melhor cotada nos guias turísticos, e que desaparece, pela última vez, jura, e eu lembro-lhe que não pagámos a renda, que está aí o fim, mesmo que seja só de outro mês, alguém chora, não necessariamente um de nós, nem o tempo hoje se define, no verão via-a de cara na parede, às vezes a conversa dava cabo de tudo, bastava isso, já preferia por tudo que se calasse, que não abrisse mais a boca, tão sensível, apertava os longos casacos andando de braços cruzados, fez-me descobrir o silêncio como oração, como praga, antes, se tivesse dito estas coisas, partia-lhe a cara, mas hoje desinteresso-me da nossa história, oiço-a de longe, parece-me que o mar é mais forte, ou sou eu que estou morto, venho cá lembrar-me porque podia ser bom mas, também, porque não era para mim, terei deixado muito pouco além do regozijo desses que pareciam pensar que a vida seria mais fácil sem gente como eu. Gente como eu? A morte é a única coisa que esta gente bebe. Eles ficam e nós não temos escolha. Debaixo de um mesmo lençol quantos amantes tiveram a lucidez de trocar o veneno pelas tristes promessas tão vazias? Talvez seja da época. Alguém nos garante que não se pode encontrar ninguém que nos ame. Aquece entre as mãos esse gole de neve e bebe-o. Não se perde já ninguém. Pelo menos isso, não há o risco de ela pertencer a outro. O mundo que resta é um eco. São tantas as evidências, e tudo nos diz que a virtude se tornou inútil. A gentileza é uma atitude pagã. Os religiosos são insuportáveis. Os amantes são belos mas frios e tristes como estátuas a que faltam bocados. Em breve, quem disser uma palavra já falou demais. As línguas terão o gosto da areia nas nossas bocas. As nossas flores veneram túmulos e estão deslocadas em qualquer outro lugar. As horas estão cada vez mais pequenas, a luz vem sempre com algum comentário trocista. Ou inventam ou exageram, de outro modo não têm nada para dizer sobre o amor. Nos poemas ainda se fala de mel, por vício talvez, porque as abelhas garantem que não foram elas. Nem mais uma colher para este mundo.

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