O bom gosto ainda vai acabar por vingar-se num efeito de bomba atómica, de fruto que cai de muito alto, amadurecendo, arrepiando a sequência genética de tudo, com todo o vagar, vindo lá de um passado gemendo de velho, só por graça, tocando na pele as cordas dos antigos ferimentos de guerras que nos esqueceram já, mas afinal sabendo tudo o que é preciso, como Rilke, que não se trata de pensarmos em vitória, mas que sobreviver é tudo, e, afinal, vai-se ver e a queixa era o seu registo, um fluir de melodia ganhando forças quando tudo em volta parece perdê-las, retido, recusando-se a ser arrastado, a deixar que o comovam essas frivolidades que dão cabo do espaço que há na boca para rasgar, soltar e desfazer saboreando, numa bulha entre língua e os dentes, o que abre e corta e o que estuda infimamente, num instante, enchê-la de abcessos, como outras vias reduzidas ao comboio de carga que vem e volta num silvo, aflito, e, é provável que o passado seja a única saída, com o seu gosto barroco por gracejos e extravagâncias, artes menos imediatas, custosas, "sinos enterrados", sombras descosidas puxando pela imaginação, uma literatura de toca e foge, numa ironia evasiva, fragmentos furtando-se a uma narrativa directa, clínica, segura, arrancando peças da cronologia, como de um relógio para que o tempo fique sem reflexo, sem regime cardíaco, embebedando-se com as passagens mais frescas de outras ficções, numa gritaria de viciosa vida de estrada, o sentido todo da coisa enxovalhado, episódios mas sem desenvolvimento nenhum senão as voltas de uma neurose, narrar o cu, antes ir ao cu à literatura, como dizia o Fallorca, num desgosto ritual, relembrar o que era a festa, o vigor pagão de últimas noites na terra, devorar e dar-se sobre o prato negro, o árduo sentido de si, o sinal ou senha transferido num murmúrio ininterrupto e que eclodiu e segue desde os primeiros instantes de volúpia consciente da criação, isso que se abate e cede diante de tantos caminhos cortados, que se escapa entre os homens, entre a triunfante vulgaridade, o desuso e o desacerto, as convicções imundas que estrangulam essa raça de últimos, com a sua solidão sagrada, os seus desejos capazes de esperar, o ensejo simples de sobreviver, passar adiante esse dom feito segredo pelo desprezo que lhe dedicam os tantos, e é por isto que o bom gosto se tornou blasfemo e, ao mesmo tempo, o único milagre que nos resta, e por isto é que faz toda a diferença gostar deste mas não daquele, como a diferença entre ter a chave certa e rodá-la na fechadura abrindo um mundo seduzido e que se entrega nas suas condições, ou experimentar o molho de chaves todo, até quebrar alguma lá dentro, perder a cabeça, arrombar a porta e espantar-se que não esteja nada do outro lado.
segunda-feira, abril 20, 2020
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