segunda-feira, abril 20, 2020


Enciclopédia de recortes abruptos, rasgos insanos, sanguíneos, luzes que viram tudo do avesso, confundem os papéis, leem-nos ardendo, compêndio de uma fauna caduca, e os últimos exemplos, aves dessas canoras habituadas a fingir a morte por comoção, uma existência de pequenos vícios, derrotas saborosas, restos de comida presos nos dentes de uma boca imensa, e os pormenores vagabundos, a dança de factos que não acrescentam grande coisa senão ao ritmo, à vigorosa melodia, estamos consumidos de uma diletância amorosa, à vez, eu ladro, tu uivas, somos a matilha das altas horas, e enquanto gritamos uns para os outros, trocamos insolências desde os nossos quartos feridos pela ondulação, dos enjoos ao fascínio, respiramos uma atmosfera que faz coisas estranhas com a imaginação, ventos imprevistos seguem-se, enchem-nos de temores e comichões, o estalar das premonições, sons nas margens deste rio, por isso não nos interessa compor ou registar o saldo de tantos assaltos, as lendas e terrores para fazer passar o tempo, fazer disso um livro seria um fim muito mau, se pudermos lançar uma frota com as suas folhas, ideias mas só tomadas na sua vitalidade em pânico, como caça encurralada, oferecendo alguma resistência antes de se abandonarem entre soluços, e serem apenas o corpo sobre o qual avança esse que não deseja ser correspondido, antes prefere impor-se e maltratar toda a história da paixão, reduzi-la a uma mancha tenebrosa num cesto de roupa interior suja, esse perfume bárbaro nos lençóis queima de súbito todas as cartas onde se tecia a intriga ociosa de amores improváveis, uma a uma raptadas as cento e cinquenta raparigas suabas e bávaras da sua barca alegre para a satisfação indescritível, não de fantasias ou inconfessáveis proclividades, mas do estupor acumulado de luz apagada, de uma aflição de se diluir num mal puro, sem necessidade de se explicar, abandonando toda a crença, degolando o pudor, os rituais desejantes, para apertar numa mão uma boa mecha de cabelos, afundar-lhe o rosto nessa última vontade de cair em ruínas, quebrando-se de súbito todo o encanto para dar lugar a algo mais natural e perverso, para que dessas cento e cinquenta descendo o rio possa originar-se uma linhagem lavada dos tantos pruridos, uma outra intensidade, virtudes desembaraçadas, escândalo, a noite levada a extremos, arfando, anotada com o maior detalhe, transmitida entre mulheres, sem margem para ingenuidades ou falsas esperanças, e se um livro pudesse levar-nos a isto, uma cultura que nos salvasse dessa monstruosidade puritana que faz de cada leito um esquife sacrificial, um culto em que na carne o gosto do mundo nos antecipa a imagem dele reduzido a cinzas, esse livro, sim, seria uma obra intrépida e tão ansiada, escrita por um génio maldito, o do tesão sufocado de toda uma geração.

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