domingo, abril 19, 2020


Nativo de uma morte sem gume, ouço-me tropeçar nalgum canavial, de rosto mergulhado em águas rasas, perdendo nelas os traços, como uma fotografia no escuro onde não se revela mais que os dedos arrumando a expressão, perdida nos vidros, nas noites que se quebrou, só e louco, morte de infecção azarada, coisa de nada, sem o que agradecer, gasta, comprada num alfarrábio em segunda ou outra mão, a que fica por trás das costas, com linhas meio esborratadas, com dedicatória para outro, uma data ilegível no frontispício, "eu sigo uma serpente que vem de me morder", num embalo estranho, sigo-a e sou feito de uma lenta despedida de nau, da súbita noite que um veneno cospe cá dentro, a vista turvando-se-me, "no mais judas do ser", um querer alguém para logo me ser lembrado o mal-entendido de tudo, a dor em que me afino, e abro ao calhas, abre o acaso, vê lá o que diz o índice, que diz de um destino despedaçado, do sol que desta página faz a sua pira, a nudez espalhou-se, essa gestação de tudo o que se fixou na tua trança, “pós apaixonados brilhando de aridez”, a roupa como se estivesse mais viva que o corpo, onde quer que esteja, cheirada tão perto tão fundo que ambiciono desolar-te, na doçura entre mortais que se amaldiçoam, o extenso encanto que torna a espera tão paciente, tão "firme em silêncios seguidos", pudesse ao menos romper-te o lábio de tempos a tempos, "antes que esta língua me faça mudar", cheio de raiva, mas frio, quis dar-te o último fruto, insustentável a esta altitude, para rolar ficando de fora só o texto, e bebê-lo à pressa, o veneno que de mim toma alguma noção, o meu amargo sabor que não vinha mas chega enfim todo num trago, interrompendo a aurora, na ânsia de acabá-lo, de to ler alto até só ser capaz de mexer a boca e no mundo mais nada, já de cara deitada a ouvir o pulso como um rumor que se aligeira, distancia, até de ti não saber o nome, o olhar ou a luz.

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