sexta-feira, abril 10, 2020


Com Heiner Müller

Corda. Passa-me um pouco, chega-me da vida
o que puderes, que estarei fundo, de boca aberta
atento como um cadáver que se alimenta
do seu túmulo, escrevendo com os ossos de quantos
E os passos que em cima me florescem nas ideias
O elmo amolgado p'la rotação dos astros
Oiço os vivos nos movimentos que à terra entregam
outras medidas, como a tempestade pergunta
pela raiz à árvore, essas florinhas e sombras que te vestem
e que pressa posta no mínimo detalhe prendendo o vento
Cospe no mar a língua, no meio de quantas correntes
enche de sangue um eco, coágulo erguido a grande altura
até se entornar na boca de quem o leia
As intrigas desamarrando-se,
a mortalidade resfolgando por todos os poros
Que a tua vida dure três palavras
entre os nomes mais infestados pelo desejo
E os nossos dois ditos alto num só fôlego,
trapos pendurados a secarem ao vento
com sangue negro, a ferida vive melhor no escuro
cada corpo leva alguns acordes talhados no osso
descrições esfolando de um a outro sentido
Enterrada em quanta roupa toco-te a pele
num frágil ponto exposto aonde venho chamar-te
Da harpa deitada, esse som que me foi tão caro
a posse violenta com que te arranco à nudez
a essa postura calma do que me faz luz
O tempo é p'ra mim já a única arma
Por isso, não te amaldiçoou-o
Basta um ritmo para fazer crescer esse receio
de me ouvires rodear-te transformar-te assobiando
recitando clássicos adivinhando quebras
como se te passasse por água, te refizesse
em verso dando-te de comer o ar à boca
e um dia logo o lerás só febril levantando que temporal
Por agora aguarda que to deixe numa bandeja
tangerinas flores dedos arrancados à cova
como raízes vivas soprando na mesa
o pó sobre a fruteira em alta constelação.

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