segunda-feira, março 09, 2020


Antes um velho chalupa resmungando com as estrelas, ou até, na falta delas, dirigindo-se directamente ao breu. Vendo à sua frente o campo de batalha, frio, as crateras já sem qualquer sinal de vida, a imensa noite abandonada. Antes uma desilusão de todo o tamanho, sem saída. Antes esse que se põe numa estrondosa aleivosia, cuspindo impropérios sem um destinatário certo, antes isso do que esses jovens farejando trufas entre as ruínas, servindo-se dos despojos, ansiosos por consertar as mais inúteis convicções, vir em socorro do passado, animando-se com algo tão instintivo ou tacanho como o desejo de auto-preservação. Antes um velhadas de cajado num lar a levantar a última saia antes do fim do mundo, a rir-se desdentado, e a tentar retirar do escuro umas formas que dêem uma ideia do que Deus tinha em mente, do que estes jovens pestíferos que apenas alimentam o fluxo contínuo e obstinado das mais taralhoucas ficções, essas que suplantam a vida, tanto no seu aspecto mais absurdo e desgovernado como na grande beleza e nos momentos em que se decanta como música ou silêncio. Antes o raio que nos parta de uma vez do que este som de realejo a produzir o cansaço das velhas noções de esperança, de uma decência desoladora, de uma moral sufocante que não é senão outra patranha. 
Assisti há pouco a um curioso diálogo entre um velho albino, cabelo e barbas ralas, bastante gordo, e um jovem desses demasiado etéreos até para se discernir o sexo, desta nova raça de anjos enfastiados que circulam entre nós, sem que pareça haver alguma coisa neste mundo que os espante ou seduza. E diante de uma cena digna de assombro, que se passava num ecrã, o velho babava uma espécie de piropo casto; sem luxúria, só mesmo encanto. E a miuda - presumo apesar de tudo que fosse uma ela -, desculpava-se por ele a uma amiga, dizendo que é o tipo de coisas que profere estando de acordo com a sua era: "A Era dele não sabe fazer melhor." A isto ele retrucava: "Diz lá outra vez?". E ela: "Tu és da Era que não faz ideia... Essa que diz coisas estúpidas e troca tudo." E agora é a vez do velho: "Tu é que és a Era que não faz a menor ideia. A tua Era não sabe porra nenhuma. Todos tão políticos, tão despertos... Mas, na verdade, não sabem puto de história, não sabem puto de arte, nem de música. Por isso, não sabem nada de política. E não estão despertos, estão simplesmente comatosos." E ela: "Eu não sei nada de música? Por favor..." Ele: "O que é? Tens ouvido Bach, tens passado muito tempo a ouvir Coltrane?" Ela: "Não." E ele conclui: "Então, fecha-me essa matraca."


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