quarta-feira, março 04, 2020


Há-de ser madrugada por aí. Com que diferentes idades te vejo acordando aos tombos entre os degraus que se aclaram entre nós... Tomei boleia de um bote fantasma, um tipo alto seco que oiço cantarolar no seu zelo ébrio e que me levou aonde são deixados em branco os mapas, não levei uma só muda de roupa, só versos incompletos à espera de um rasgo, um volte-face, um gole de mar gemendo de tudo, num assalto ao eterno tom, esse que viu o azul tornar-se um clássico, e disse porra, isso não, tapou-se, fugiu daqui, isso e impensáveis tesouros, a herança de corsários nascidos em berço de ouro, náufragos como pérolas em galeões afundados, as obras completas desses que haveriam de ter escrito passagens para outro mundo mas acabaram incompreensíveis na memória frágil dos peixes, e chego aqui deslumbrado com todo o esquecimento, redigindo à pressa estas crónicas, como um naturalista lançado no Além, por vezes sinto que nem escrevo, que descrevo os esforços para escrever, os esforços para nascer, passar a limpo a peste, os nomes como são ouvidos cuspindo, manchados, urrando, a série completa das doenças, a epidemia dançando no meio das cidades, a canção das mil moscas em torno do dedo que apontou a única direcção, escrever com os olhos comidos, com a morte com receio de se chegar, piscar o olho à bibliotecária, contar-lhe as lendas de embalar com que se entretêm os mortos na sua noite sem fundo, recitar-lhe o poema copiado à mão, escrito nas bainhas de uma flor, para que a belisque o cheiro, a siga, com a calma compenetração de um sedutor, e mesmo que lhe rechace os avanços, acabe traindo-se, decorando-o, e cada verso lhe vibre atrás das têmporas, nos jardins que traz suspensos, e enfim regresse um dia mesmo que desfeita em pó, grãos ou pedrinhas, trazida por caminhos de formigas, e ali passe, se desnude, viva, costurada na intimidade deles.


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