quinta-feira, junho 20, 2019

Acenar à mãe desde um romance em língua estrangeira


Se não estás com tempo, vai entreter-te com outra coisa. Agora que dei comigo personagem de romance não deixo que retirem o prato sem o ter limpado, gozado e ainda lambido. Não sou eu, mas qualquer coisa inspirada, levada para uma autoficção, coisa rebuscada, e, felizmente, não tão frívola quanto se esperaria, o que já é um ganho. Mas primeiro deixem que vos conte como vim a saber da coisa. Se me tomasse por colecionador de alguma ordem entre as que mais me compelem, para lá das metáforas que vou arrancando como escalpes, aquilo que ainda me anima são as coincidências tão harmoniosamente servidas e a que me agarro como se o verbo e a carne, afinal, tivessem o mesmo balanço. Então, deixem que vos mostre o que li no mesmo dia em que vim a saber que, depois de ter entrevistado Rachel Cusk, ela fez de mim o que quis, levou duas ou três costelas, e vingou-se da velha noção da origem adâmica da mulher. Em “Unicórnio”, Manuel Mujica Lainez tem como protagonista uma fada, que às tantas se sai com esta: “Eu era mui formosa. Perdoa-me a vaidade, leitor, mas como não ceder ao prazer incomparável de falar de mim própria? Falar de nós próprios, analisarmo-nos, explicarmo-nos – e, em consequência, fazer que os outros falem – é uma volúpia tão velha como a história do mundo, e os pequenos progressos que conseguimos na Terra, desde que por ela transitamos, devem muito ao afã ingénuo e ilustre, desesperadamente partilhado por insignificantes e por grandes, de autodifusão perpetuadora. No dia aziago em que deixarmos de falar de nós próprios, ficaremos sem o sentido da nossa eternidade e o mundo desmoronar-se-á por entre cinzas tristes.” Ora, se vim a saber da coisa isso desde já me obriga a recomendar-vos os serviços desta horda de jagunços que não perde uma oportunidade de distorcer seja o que for, aproveitar uns galhos para fazer uma daquelas bonecas à nossa imagem, e desatarem a alfinetá-la. Entre os lucros maiores que se tira com o cultivo de um incontável número de inimizades, destas cujas escrófulas se abrem em exuberantes tons iridescentes, por causa do tanto tédio, da falta de combustível no tanque da vaidade, e que são, pelo menos, assumidas sem o menor pejo num meio em há algo de fosco em todas as superfícies, tanta actividade dissimulada, está não só isto de nos manter alerta, vigilantes, como o de, a partir de certa altura, essa tropa ressentida se tornar útil, instalando-se como uma espécie de pombal num anexo da casa por onde vimos e vamos, e, assim, como pombos-correio trazem e levam tudo o que nos diz respeito. É um serviço de clipping bastante eficaz... Desta vez foi graças à sabujice saloia do João Urbano (se o nome não vos diz puto não se apoquentem, está longe de integrar o elenco central desta nossa novela), mais um galo com o próprio nome atravessado na garganta como um pedaço de comida mal mastigada e que parece sempre prestes a lançar-se numa cantoria a anunciar a aurora de uma nova era, enterrando de vez a actual, mas, se formos a ver, não passa de um escriba menoríssimo, que a par de uns textos insossos a dar traulitada no ar, largou aí duas novelas numa prosa pirralha, num estilo desdentado e sem o mínimo vigor. Lembra um gajo que se pôs a ler um daqueles romances mais bruscos e pornográficos do Henry Miller, deixando-o virado sobre o sofá, enquanto dizia a si mesmo que bem capaz daquilo era ele... E foi este mocetão quem veio para o facebook dar o recado de que a Rachel Cusk, em “Kudos”, livro que encerra uma trilogia, se serviu da sua passagem por Portugal, uma breve temporada passada entre Matosinhos e Lisboa, em 2017, para ir mastigando as coisas numa desatada ficção, colhendo reflexos indiscriminadamente. Nesses dias, além de ter participado num festival literário, deu umas poucas entrevistas; uma deu-ma a mim. Para além da transcrição editada, que saiu na altura no jornal i, ainda tenho o áudio, que comprova que não tivemos mais que uma conversa bastante formal... E fui confirmar que o desvio ficcional, se serviu para enriquecer a trama, evidentemente deu lugar a uma excursão delirante a partir da conversa que tivemos, e em que, na verdade, como era de esperar, a posse de bola foi quase sempre dela. Se fosse para ser levado a sério como relato do que realmente se passou, diríamos que a coisa roça a deselegância, ao fazer com que o personagem levemente inspirado em mim ("era muito alto, completamente calvo e os seus óculos de aros grossos eram tão grandes que pareciam concebidos para ampliar o seu papel de interrogador, ao mesmo tempo que transmitiam a esperança que ninguém o visse") diga isto de si próprio: “Em nome da lealdade, acrescentou, talvez me devesse dizer que era conhecido naquela cidade como um criador e destruidor de reputações: uma crítica negativa que fizesse podia arruinar um livro, e, por isso, uma consequência da sua honestidade era ter muitos inimigos, o que significava que, quando ele próprio publicava um livro — atá àquele momento tinha escrito três volumes de poesia —, havia quem sacasse da faca, como se costuma dizer. O resultado desses ataques era que a sua obra não tinha conseguido o reconhecimento que, de outro modo, teria recebido (...) embora a sua capacidade como crítico não tivesse diminuído; na realidade, não parara de crescer, até ao ponto de ele adquirir renome internacional". Evidentemente, nunca disse tal coisa. Desde logo porque é um disparate, e o tipo de coisa que não se confessa sem se parecer um imbecil. Mas além disso, como é fácil de perceber, trata-se de um retrato bastante untuoso, e o mais plausível é que tenha sido colhido junto da editora (na altura era Quetzal). Isto além do descabido que seria um entrevistador fazer do entrevistado seu refém para o submeter a este tipo de alarvidades narcisistas. É o tipo de coisa sem cabimento neste género de interacções, em que, especialmente quando o autor é estrangeiro e não há, de antemão, grande confiança, não fica margem para um quid pro quo. E se até posso confessar a admiração pelo autor, no fim, nunca peço autógrafos nem me faço fotografar, também não levo livros para oferecer, e nem me esforço muito por ser simpático, tentando apenas mostrar que fiz o trabalho de casa e não disparar perguntas à toa. Não deixo, contudo, de reconhecer que noutros momentos o retrato é até bastante sensível, de uma escritora com uma fina percepção no tocante a esses sinais que transpiram durante uma conversa. A sua ficção assalta e furta-se bem à realidade, manobra-a a seu favor, é bem esgalhada, densa do ponto de vista psicológico, um relato que puxa de uns detritos, cola indícios e safa uma bela intriga de reflexões que se vão justapondo e gerando um certa transe... Do lado de cá do retrato, é como ficar diante de um reflexo nosso que se esgueirou do sonho de outra pessoa. Há algo de disfórico, um desequilíbrio que se comunica, e, ao mesmo tempo, é-se seduzido por esses intuições que parecem recompor-nos, como ler-se a si mesmo numa tradução em que houve excesso de liberdade mas não se pode dizer que a coisa tenha ficado pior, em alguns aspectos até melhorou, e ficamos com vontade de fazer alterações no original. É como ser-se esticado, aqui e ali, ganhámos dimensão além desses ângulos em que nos reconhecemos. Não vou transcrever as passagens mais instigantes, até porque não comprei o livro; li-o de pé, numa livraria de centro comercial. O mais curioso é que, talvez por razões de economia narrativa, a narradora tenha posto o tal crítico a fantasiar a sua importância, quando esse discurso, na verdade, só poderia ser proferido por um outro, alguém que nele só vê um presunçoso, quando a protagonista (sempre recuada, no papel de mera testemunha) desencrava algo mais. Com isto, aproveito para clarificar uma coisa: como crítico, jornalista ou o que quer que me queiram chamar (um safardana investido em derrotar a concorrência desde o seu pequeno púlpito, um caixote de fruta virado ao contrário de onde grito umas aleivosias, e isto no jornal que – se perguntarem ao Paulinho – é do meu pai...) já testei a coisa e sei-me incapaz de vender sequer meia dúzia de exemplares de um livro ainda que me desunhe a tecer-lhe elogios, e se não sou capaz de fazer reputações muito menos sou de as desfazer (perguntem ao Mexia, que anda para aí todo lampeiro, como mestre indisputado, a lambuzar-se com tudo o que é da cultura...). Portanto, não andem a convencer os estrangeiros de que eu estou nisto cheio de tais caganças, convencido de que tenho feito alguma coisa para ganhar renome internacional. Prefiro mil vezes o papel do bobo, do inimputável, prefiro rir-me eu e os dois ou três que me lêem em primeira mão, trocando notas, rindo-nos ainda mais. No fundo, a única ciência nisto é saber que tem de haver alguma compassividade para se ferir de morte alguém, temos de nos colocar no seu lugar ao ensaiar a estocada, senti-la, tem de nos doer a nós primeiro, e toda a gente sabe que as coisas terríveis, as piores que ouvimos ou dizemos, são proferidas com a veemência de, no fundo, toda a gente as saber já, mas em relação a estas coisas sensíveis persistir um estranho pacto de silêncio, mantidas sob reserva. É preciso ser-se o miúdo, o remelento, estronchado, para vir desbroncar-se em relação a eles. E o que dói é o atrevimento, que haja um tipo que se deu ao trabalho de perceber essas relações, ficar a par do esquema e, logo depois, sem o menor pudor, sem receio das consequências, por a boca no trombone, escarrapachar em letra de forma o que só se diz em surdina, essas coisas que tacitamente acertámos em manter ocultas, por causa dos telhados de vidro e o que deixamos entrar em casa pela porta dos fundos, para nos precatarmos, não vão os demónios sair todos à mesma hora para dar caça a estas nossas frioleiras. Ser-se o maluco é mais um estar-se nas tintas. Mas que renome internacional!? Metê-lo no cu é o que me parece certo. Antes preferia ver esses castelinhos a arder, entoar hinos à ruína e celebrar o desastre, como dizia o Panero maluco, poeta a quem todos os louros não chegaram para o convencer a sair do hospício, vir fazer figuras cá para fora, e que, cá mais para o fim, ensinava que devemos contar com a ruína para que meça os homens, nos dê a sua estatura real, não essa que eles supõem e para a qual buscam encher-se de honras.

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