terça-feira, junho 18, 2019


HOMENAGEM SEMPRE A TEMPO AOS SACERDOTES E OUTROS CHULOS DA CORTE CELESTIAL

Ah, a vossa virtude - senhores - leva-nos a honrar-vos com estas libações, essa virtude radiante como uma lâmpada acesa pressionando a noite inteira de um lado só, inclinando-a, como se a obrigasse a meter água, ir ao fundo, trazer de longe uma dessas manhãs demoradas, lerdas, com esse coxeio lendário e doce, e não, nunca nos iludiu a sua finura, a subtil justiça, esse modo de usar da máxima discrição ao notabilizar-se, assediando a luz disponível, como o fruto de uma técnica rude, hasteada onde, de outro modo, o escuro se alimentaria dos nossos trôpegos sonhos. Temos por cá um de vós ao leme de cada uma dessas fábricas que tornam o vazio admirável, no pano cru e desolado esse fio recosendo a graça inerte das coisas, a sombra gasta das coisas, a coçar essa micose talentosíssima, a do proletário como dançarino de cabaré, porque até o mandrião hoje sente o imperativo da produção, precisa vender as conchas que colhe na praia do seu ócio, obriga-se a estender a toalha, vender a bijuteria do indizível, fazê-lo tilintar sobre o efeito do vento, e o nada, bem vistas as coisas, tem hoje a sua arte, quase um drama no meio desta sociedade corruptora, tem a sua escola de marcenaria, para se estar dedicado a umas cagadas, mas com o afinco de um electricista, canalizador ou estivador. Que belo o figurino, como nos surgem fardados de um cansaço teatral. Veja-se como se usa toda a gama desse desgaste com o seu quê de lirismo, os gestos com o fundo descosido próprios de um mineiro há dias sem escutar o trilo das aves solares, esse orgulho de tocar deixando a mancha de tinta ou carvão, a maquilhagem das velhas mazelas, o jeito de torcer a boca num nó de marinheiro, fazer do sobrolho uma espécie de canhão, e o suor escorrendo como resina, um odor como de vela queimando num campanário. Mas o que faz ele além de arregaçar-se, ter mangas em tudo, aquele desmazelo estudado, as camisolas no ponto, a malha esgarçando, cheias de borboto? Ao que parece, o mel dos desocupados deu lugar ao ranço de uns artistas niquentos, a tratar do catálogo do bonitinho e dos chouriços de papel, envergando como fantasias o agasto das gentes trituradas, como quem se juntasse à fila dos operários ou a uma marcha popular, um desfile de carnaval. Lá estão eles com a bata e um excesso de instrumentos, até de navegação, atafulhando o bloco operatório, de roda de um paciente frio demais, e eles com urgências salva-vidas, mas vazando-lhe as tripas, enchendo-as do caldo grosso da eterna calmaria, cortando as unhas, os últimos e esparsos mas persistentes cabelos, a alindá-lo faz já décadas, e quanto mais se carcome a coisa, mais se entretêm dando-lhe os pedacinhos à boca, contando-lhe estórias suas... e a morte a achar tudo fascinante. Temo-lo cá, este herói dos domingos, este ser todo ele nariz, que nos decompõe e engole como a burriés, disponível, por obséquio, para os serviços de um trolha cultural, com preços tabelados como qualquer mercenário que se preze, sempre a postos na hora dos finados, quando a memória precisa de um ombro, como qualquer viúva, lançando o casaco sobre as costas desse imenso soluço. Tanta virtude pesa-lhe, torna-se uma profissão de risco. Se o poeta se põe aos gritos diante das repartições celestiais, este trata os anjos por tu, esquissa, recorta e cose-lhes as asinhas, como um caixeiro-voejante, com a invencionisse dos seus produtos-corneta, cosendo imprecações no forro da sua toga de oficial da divina previdência, garatujando entre sessões, a encher a toalha dos desenhitos de cobras e lagartos, misturando a gota discretíssima de veneno, e tudo comovidamente ao largo de nada, como florinhas de papel decorando o chiqueiro.

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