terça-feira, maio 07, 2019

Fialho, a lombriga por excelência



Veja-se o estado em que nos chega a carninha fresca vinda do triste talho que é o nosso meio literário. Uma pobre carcaça que já nem o interesse dos abutres desperta, nem para afiar o bico, essa coisa desde sempre mal morta, e que já esgotou todo o catálogo de metamorfoses e reinvenções a ver se pegava como escritor, contraiu aquela sarna dos do abysmo, e é vê-lo aí, um que se tinha como lobo solitário, justiceiro das letras de província... Era fácil de prever que por uma malga logo punha o seu exército de pulgas ao serviço do circo Cotrim & manos, figurando enfim num retrato de família. Aqui está Fialho, "o moribundo", travestido de jovem promessa. É espreitar por cima daquele ombro para se ver o que aí vem de novo. Depois querem saber o que é feito da juventude, que foi que lhe aconteceu? Fala-se na geração dilapidada... No lugar dela espetaram estas velhas cagonas, foi o que aconteceu. Só neste país é que a juventude é tão entradota que, não se ficando pelos 25 nem pelos 30, os tem para lá dos 40, em eternas plásticas, a chupar tudo o que sejam elixires, e, assim, quando se finam é aquela conversa da desgraça, e até se diz que a miudagem hoje falece dessa estranha doença da idade avançada, trastes adolescentes de sessenta anos, que desaparecem cedo porque os deuses, já se sabe, não aguentaram mais esperar.
------------------------------------------------- 

O Fialho não tem ideia do que seja um saco de porrada; é até comovedor que se eleja como objecto de afeição, por tornar claro como do amor parece fazer a pior ideia. E, para nos explicar o fenómeno, quem melhor do que Camilo, que nos diz que "os sintomas do amor, em muitos indivíduos enfermos, confundem-se com os sintomas do idiotismo". Trata-se por isso de um erro de interpretação para o qual o pobre leitor foi empurrado por tudo aquilo a que a vida o vem habituando. Assim, enternece-se pois lê como uma ténia, essa que "lombriga por excelência". E Camilo ainda nos ajuda a entender como, para este género de personagem, o aspecto mórbido daquilo que parasita é para os seus intestinos baixos o que o amor é para os intestinos altos: "confunde-se com os sintomas de graves achaques". Fica, pois, mais do que perdoado pela confusão. Mas sou o primeiro a reconhecer-lhe o benefício dessa camuflagem de sentimentos num alegre consumidor de escórias, atributo que nos não surpreende num anfíbio que tanto na prosa como no verso, por muito que esperneie, não encontra jeito de aquecer o sangue, seja o próprio ou o do leitor. Não deixa de ser verdade que não havia razão para colocar sobre ele o alvo, a não ser por nos aparecer ali à cabeceira, nessa gangrenada visão do que possa ser o novo, e que só com uma grande amputação (que não começaria nem acabaria com ele) talvez pudesse refrescar o desejável efeito de reanimação do ideal moderno de uma juventude que, em vez de continuar, viesse romper com o vício, com este cardápio de literatos que se vai lendo como as páginas de um necrológio. Mas é verdade que me dá uns apetites, e me lanço a esse prato cheio dos tentáculos pequeninos de um polvo que fez da literatura contemporânea um impenetrável, quase ilegível borrão. É certo que devia poupar-me, mas que fazer se gosto disto, prefiro enrijecer os ossos das mãos a desconjuntar estas anatomias estapafúrdias, e, assim, entrar na marabunda, de tal modo que quando sei que vai sair outro disparate, um artiguinho com potencial, fico até ansioso, corro os quiosques a ver se já chegou, e os que me conhecem este desequílibrio acham-me louco por dar seis euros por uma lixarada como a que preenche as páginas da Ler, classificados para pequenos egos encravados. E o artigo do Bruno Vieira Amaral, que nem disfarça a má consciência, a falta de justificativa, um texto só que contextualizasse, oferecesse balizas mínimas, é o exemplo acabado de quem anda nisto com o ânimo de um bufarinheiro. E ainda seria pouco dizer só que a coisa não tem pernas, nem bengala para se ter de pé. Mas anedótico é que, mais ansioso que eu, estaria o pobre do Fialho, lá veio o gajo das Caldas para tirar a foto, deu-se ao trabalho de descer cá abaixo, à cidade, como quem se aperalta para a visita anual ao médico, e logo se pôs todo feliz por contar com mais um destaque, nem uma côdea para servir à lenda, este género de ténia já faz a festa com uma mal enjorcada legenda bibliográfica. E, no caso, é mesmo pena porque nem as usuais rendas mentais, um delíriozinho piedoso, algum testemunho do tempo sustentando o elenco, mas pior, o Bruno Vieira Amaral, que costuma exibir mais brio, foi só mais outro a cuspir na noção esfalfada que por aí vai do "novo", das novidades, avelhentando-o, ajudando a empalhar a coisa, mumificá-la, borrifando-se e borrifando os seus "novos valores da literatura" desse tipo de essência que nos entra pelas narinas vindo da jarra onde as flores nos deitam aqueles esgar degolado. Mas fico feliz que este meu velho saco, onde venho há anos aperfeiçoando o golpe, está entre esses que, sempre tão ressentidos, na verdade, logo se mostram alegres por se verem chamados a ilustrar a nossa comarca das letras, em mais outro postal do nosso desolador presépio. Já não há mitos nem glórias, apenas um microondas para o caldo mil vezes requentado, e sim, como atabalhoadamente nota o Fialho, ficam mal, destoam bastante naquele retrato, o Miguel Mochila, e o Rui Lage, autores em tudo superiores ao Fialho. Tê-lo ao lado, mesmo que num artigo para encher, é como darem-se em flagelação. Enquanto os outros vão com os rostos abertos, estes parece que se encolhem ao verem-se nesta procissão provinciana reciclável, duendes entre os cadáveres mais ou menos ambíguos que formigam na paisagem. Lamento sempre que vejo um escritor de talento, uma consciência séria, em luta consigo mesma, ver-se usado nestas atrabiliárias campanhas de vendas. E reconheço o dilema: não sabe bem até que limite se há-de levar a precaução, o imperioso gesto de recusa face a um tempo em que os autores não sabem pensar-se senão como produtos. Afinal, até que ponto, se esticarmos muito o não, não acabamos roendo a própria corda, esse frágil fio que nos liga aos outros (mas outros realmente, e não estes cromos que tanto gostam de sair repetidos). Desta noção das coisas, hoje, em algum momento, todo o autor acaba por debater-se com o risco de acabar isolado, marginalizado a um ponto sem regresso, por ter ido além da conta no uso do "não", ao ponto de a sua obra ser colocada do lado de um fundamentalismo de qualquer espécie, uma marginalidade que se torna útil a estes que precisam a todo o momento de aparecer para sentir que existem, que o seu trabalho tem algum valor - e, curiosamente, não tem por isso mesmo. É, portanto, um dilema decisivo para qualquer escritor escrupuloso, a grande questão que tem de resolver consigo mesmo, consciente de que, dizendo não a tudo, e à partida, isso será o mesmo que apagar a luz de presença, deixando-se estar às escuras, não mais ser procurado, arriscando-se a viver ermitado, e ainda dando o seu melhor, como se trancasse os leitores do lado de fora da sua gaveta.

Sem comentários: