quarta-feira, maio 08, 2019

A cólera de não nos terem dado os deuses verdadeiros inimigos com que brincar


Que dores de dentes me dá tudo isto... Só mordendo. Podia rangê-los em silêncio, imobilizar-me voluptuosamente na inércia, devaneando como se faz para aí, gracejando sobre o facto de não termos sequer um verdadeiro objecto de raiva. Pois não os tendo, creio que às vezes o melhor será farejá-los para fora da imaginação, criá-los a partir de seres que aí se postam como espantalhos. Há aqui um passe de ilusionismo, uma batota, uma burla, mas a verdade é que nos dói. É de facto uma miséria, uma falha terrível que se acha a certa altura, uma falta de meios por parte da existência, e nesses momentos desconfia-se de que houve desleixo nesta porra. Que grandiosidade vertiginosa no universo, mas depois, indo ao detalhe, que vazio se espreita no fundo das coisas. Admito que, em casos assim, o abate, na falta de uma rima melhor, ainda possa ser uma solução. Cansa-me o Fialho, a falta de vigor deste nabo que não tem nem a consciência da honra que lhe faço. É de uma lisura aquela cabeça, para não falar daquela prosazinha sem osso nem nervo. Vou buscá-lo ao buraco dele, levanto-o, saúdo-o, sacudo-o, enfio-lhe umas taponas a ver se o liberto do pó, se o arranco àquela esclerose mental, e nada; queixa-se como se implorasse que lhe permitisse ser só outro velho que prefere ficar na cartada com as mulas do meio literário, ir-se daqui sem dar luta. Também eu queria ter outra gente pela frente, mais façanhuda, dura de roer, umas inteligências que metessem respeito... Mas já se vê que não há mais que isto, temo-nos uns aos outros e é só. Para quê vir dar-lhe com ficções em cima, retirar-vos um botão para ir coser no casaco do personagem. Se não se importam, ou mesmo que protestem, tomo essas existências de cartão de empréstimo, escrevo na margem, por cima, corrijo. E nisto, desta esforçada convivência, tentam vir-me com exigências. Esperam uma coerência absoluta de mim, uns maus modos diabólicos. Sinto que gostariam de fazer de mim o Unabomber da crítica literária, enfiado nalguma cabana em Monsanto, a alimentar-me de bagas de goji e caganitas de passarinho, sem vir cá fora senão para mandar a literatura dinamite pelos correios, e isto para não cair em contradição com os ataques que vão saindo desta pena à paroleira promocionante de uns e umas que até já esquecem que o importante não era compor a estante, mas o acto da escrita, essa ponderação difícil, absurda, tantas vezes em silêncio. Ora, este jura que não se fica, que não aceita ser injuriado sem dar réplica, mas vem e nem ferradura tem nos cascos, como se não se permitisse senão galar as burras. A este que se espoja contente como os demais nesse lodaçal mortífero, nesse monturo fétido composto das ambições de uma gente que não deixa gosto de espécie nenhuma em quem as lê, e que tresanda a fantasias que dão dó, nesse "glacial meio desespero meia esperança", numa forma de sepultamento em vida, deixo-lhe um citação que pode ser que junto da sua descendência, se melhor misturada, talvez ainda venha a produzir algum efeito. Sobre essa forma de se ler mais do que os livros, os homens, disse Carl Einstein: “Eu só acredito em pessoas que comecem por destruir os meios da sua própria virtuosidade. O resto são meros escândalos de bastidores.” Portanto, deixemo-nos de escandaleiras, bagunças sentimentais, de todo este veneno de impregnados desejos insatisfeitos, umas figurinhas como soldados de plástico pretendendo fingir-se dignidades, dando salvas quando um morre e nada morre com ele, muito rectos. Uns bonecos que nunca foram esbofeteados. É uma pena, na verdade, o modo como andam nisto mas nada querem com a sensação de se ser esmagado, como um insecto, reduzido a nada. E esforçam-se tanto por bagatelas, por um lugar na fila, pelas senhas no refeitório onde come toda a gente. Que terror de se acabar sozinho, como aconteceu com cada um dos autores que admiram. E o Fialho até é um desses mesquinhos admiradores que se servem do prestígio dos suicidas, como se lhes pudesse vestir as peles. Pois, talvez pudesse começar por escrever num português que fizesse tremer quem o ousasse desafiar, e não rebaixar tudo a uma troca de galhardetes. Se o desaforo ainda é o alfinete que vos fura a pele, se merece por isso que se estude os seus quadros de honra, e se vos cuspo em cima, do mesmo modo poria a cabeça num cepo na hora em que venha daí uma sentença nascida de algo mais do que essa zarolha indignação. Chega-se a este ponto, com a alargada consciência do deserto que se tem em volta, e um tipo conclui: “é bom ser-se um canalha – como se, para um canalha, fosse uma consolação ter a consciência alargada de que é mesmo um canalha. Pronto, chega... Quanto a falar, bem falei eu, mas tirei a limpo alguma coisa?... Como se explica este género de gozo?”, pergunta Dostóievski, e eu creio que é uma via para um tipo refinar-se, andar à bulha, cobrir-se de marcas de guerra, nem que seja por peguilhice. Continuando a alargar a consciência dos seus limites. E devolvo-lhe outra vez a palavra: "claro que não vou furar a parede com a testa se não tiver realmente força para a furar, mas o facto, por si só, de a parede ser de pedra e eu ser tão frágil não é razão para me submeter.” 

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