"Romance Português Contemporâneo - 1950-2010", de Miguel Real, ed. Caminho
E depois há esta obsessão das listinhas, dos pódios, a absurda tara que une e denuncia os nossos promotorzecos da livralhada, sempre com o caderninho e os pontos, as promoções e despromoções, estrelas que se seguram com grande custo, caindo e colando de novo com cuspo, e as medalhinhas que fazem de badalo ao pescoço dos vitelos. Os pastores vesguíssimos não se cansam de preencher o boletim desse 1X2 da literatice, a tentar enfiar a coisa em rankings, a vir-nos com aquela banha da cobra do "um dos mais estimulantes livros dos últimos 20 anos", espera, "200!!!", bota séculos nisso... E isto para fingir que se tem a última palavra. Na verdade, já fede tamanho desespero, essa ânsia com que o crítico de bibe, ou o caturra que ninguém lê, julga ostentar autoridade para fixar o cânone... Se ainda fosse uma lista de nomes para fuzilar! Mas não; é sempre um diploma em papel higiénico, uma comenda redigida num português de tom fúnebre, e lá vem o rol dos honoráveis, a lista encimada por alguns distintos finados (para ganhar balanço e despistar, dar ares de coisa séria) e logo resvala para esse lazareto de troca-tintas, uns tipinhos que ninguém sabe quem são projectados a um parnaso paroquial - e que fofos ficam na fotografia os nossos 'imortais'. Vendo bem, nem uma aposta séria é, mas uma lista dos convidados para as mais aborrecidas festas de anos, baptizados, almocinhos na quinta solarenga da tia Celeste. Estas listas deviam ser escritas uma só vez: como testamento. Íamos lá ver, volvidas umas décadas, e se não passasse de uma vala comum já se sabia da seriedade do bicho. Quanto aos escribas, era chamá-los a uma inspecção, questionar se levam realmente a coisa a sério, dispô-los em círculos de seis a jogar à roleta russa se quisessem publicar um livro. Quem tivesse mesmo de o fazer, arriscava que a última refeição nesta terra fosse uma bala. Uma que escavasse num ápice um furinho entre a goela e o ego. Estancavam-se logo essas vaidades gangrenadas. Assim, o leitor ao pegar no livro sentia nas mãos o peso e na alma o calafrio desse potencial acto derradeiro, tenebroso, tinha entre as duas um caixão selado ou um em que podia ter-se deitado o escritor. Mostrou, pelo menos, convicção suficiente na coisa para arriscar a vida para fazer aquele livro chegar-te às mãos. Nada menos que isso seria hoje de exigir no reino da barulheira. Haveria pelo menos duas filas: os inanes, que se coçam por escrito, e aqueles outros, que se sentem desvalidos de tudo, e sem outro recurso, seres demoníacos a quem não importa se descem mais um nível ou dois, tendo já isto como o inferno.
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