terça-feira, janeiro 01, 2019

Miguel Serras Pereira, valas a céu aberto, margaridas e o manual lírico da devoção (5)


Cheira-vos a fresco? Diz que está por estrear, e um ano novo é já qualquer coisa de se admirar num mundo tão desconchavado. E, nisto, eis-me aqui já de tambor, impregnado de ritmos depois de ouvir-vos os tachos e as panelas, o sangue mexido por essa vaga de resoluções, como se se formasse uma espuma nele, mas antes de depenarmos inteiramente o cisne, merecer-vos-á alguma atenção este texto, e depois, claro, o aplauso de todos os sectores, de tão no ponto, tão de comedimentos condimentado, sem faltar a pimenta de umas perplexidades, o sal pouco que faz justiça às preocupações da época, vigiando a tensão arterial e o resto... Vislumbra-se também pelo fundo uma “luz muito mártir”, o que vem pôr ordem aos abusos de um troca-tintas, assim se infere, e, nas cabeças demasiado fixas ao corpo, soará de novo a inquietação mas para que foi todo este escarcéu, poderia alguma vez ser por umas traduções nem tão más como isso? Se isto começou com uma certa náusea, é natural que acabe por uma debandada de perfumes. Admitida a hipótese de fiasco (mas isso vejam lá entre vocês se por cá é coisa que se admite, se a Cultura aguenta, se em seu nome também se fazem asneiras, ou se vamos de sucesso em sucesso para o buraco que, lá mais à frente, ninguém oculta), se pudermos fazer mais que o luto, reduzir a velocidade para espiar o sinistro, talvez a crítica, na sua tão propalada função positiva, possa retirar outras consequências, e não ter de se ficar pelas lógicas cortesãs, mesmo porque escrever, como já alguém notou, não mostra o que fica mas o que falta, e segundo sei, continuas a faltar tu, como falta que te completem ou destruam, assim, e ao invés da bata, do estetoscópio, do sente-se ali, dispa a camisa e tussa, ainda prefiro o fato macaco, as manchas do óleo, e o calendário com os meses que se seguirão e elas, com tudo de fora, e já iremos às reservas da Margarida, mas antes e ainda, as minhas:

Assim que Rimbaud se tornou negreiro
e começou a lançar as redes
sobre a Abissínia
a caçar o leão negro
e o pelicano negro
abandonou a poesia
Como era leal, esse rapaz
Mais numerosos são esses que permaneceram poetas
e se tornaram negreiros
usurários
sem ainda assim abandonarem a poesia
Tornaram-se representantes de agências de publicidade
vendedores de quadros falsos
sem ainda assim abandonarem a poesia
Nos palácios dos déspotas os seus poemas transformaram-se
em portas e janelas
mesas e tapetes
mas eles não abandonaram a poesia
Dispuseram-se ao louvor
e receberam medalhas e honrarias de todos os potentados do mundo
a taça de ouro, de prata e de pedra
mas não abandonaram a poesia
A chancela dos polícias
as marcas das solas desses polícias cobrem-lhes os poemas
mas eles não abandonaram a poesia
Que nobreza, a de Rimbaud
como era leal, esse rapaz


- Mou'in Bsissou
(versão de Luís Filipe Parrado)


E se hoje é um pouco tarde, pois toda a justiça se fez em nome de Rimbaud contra todos quantos ficaram pelo caminho, ainda poderíamos tomar como sensata a censura de Georges Izambard, o professor que, tendo começado por acicatá-lo, parecia arrepender-se, dando-se conta de que esse que se anunciava como o Outro, com o típico génio insubmisso da adolescência, estava a tornar-se uma peste: “Não quero dizer-lhe que está maluco, isso encantá-lo-ia. Mas se crê verdadeiramente que isso aconteceu, quero provar-lhe pelo contrário, que ser absurdo está ao alcance de qualquer um.” Rimbaud já não comia no prato, havia cuspido nele, e com a maior das insolências clamava: “Desdém para os inconscientes que trapaceiam com o que ignoram completamente!”. E umas linhas antes, na mesma carta: Por agora, avilto-me o mais que posso”... E isto vem antes da célebre conclamação: “Quero ser poeta, e trabalho para ser Vidente”. E até me estou a guiar pela nova tradução, que para estas orientações mais firmes ainda serve. Mas, século e meio depois, era de esperar que também Rimbaud acabasse traficado entre “proprietários, vigaristas, druidas e peraltas”, e também não espanta que sirva de “estandarte aos gloriosos, de trampolim aos cautelosos, de trípode às pitonisas”... É uma espécie de erosão que se serve do bronze, converte em monumento de modo a silenciar, neutralizar a ameaça: deste modo, por mais que os novos execrem os antepassados, por fim acabarão servidos à mesa dos velhos imbecis que cheguem depois, e ainda que tenham varrido milhões de esqueletos, como os produtos acumulados de tanta inteligência zarolha, em seu nome, os velhos não descansarão até reerguer das cinzas as velhas comodidades, restabelecendo o nojo a todo o desafio. Por isso, como sublinhou Cesariny, “deve o poeta contar ainda com a denúncia que é feita à sua solidão pelo acto policíaco dos que não são nenhuns, porém sempre exigiram que o poeta acompanhe, que o poeta não estrague, que o poeta coincida, seja, por um lado, com os termos legais do inferno a que assiste, seja, por outro, com o que lhe apresentam em matéria de infernos para o futuro”.
Assim, e se não nos cabe, nem são admissíveis hoje as indisfarçáveis arrogâncias, se não se pode varrer tantos esqueletos de uma vez, desde logo pelo constrangimento que causa às famílias, resta-nos a “distribuição de morte ao domicílio”, e uma vez que o Serras Pereira se indispôs logo, mas ainda antes da minha tréplica, como supôs a Margarida, isto numa altura em que, escrevendo no jornal sobre a “Obra Completa” de Rimbaud publicada pela Relógio d’Água, usei de toda a cautela que pude perante um trabalho de tradução em que tudo me pareciam tiros bem ao lado, vindo o insigne tradutor queixar-se da imoralidade da minha crítica, além da sua duvidosa assinatura estilística, sem nos rendermos à discrição dos escravos, nem à austeridade das virgens, vamos dar uma volta mais larga, fazendo uma atenção às reservas da Margarida. “Horas intermináveis”, “seguramente”, diz ela, sobre o tempo que passou o outro de volta do osso duríssimo de Rimbaud, e que isso merece respeito, não as hierarquias, mas isso... Seguramente!? Bom, se é assim, vamos para casa e não se fala mais no assunto. Porque eu também tive a maior admiração por essa coisa do optimismo, da boa fé, mas depois vi-lhe o fundo, vi o esquema, como funciona essa presunção da inocência numa sociedade tão falsa, cansou-me, se calhar porque levo mais o ouvido ao chão, não me fico pelo peito, onde tudo, mais ou menos, e lá pelas suas razões, bate tanto como pode, mas depois é o que se vê, tão poucos estão entre os que “sabemos dar a nossa vida inteira todos os dias”. De ouvido no chão, sentem-se os passos, as aproximações, estima-se o tempo que leva, e como essa coisa da boa fé a toda a hora é outra trapaça, muito conveniente, sim senhora, tão doce, tão de perder a vida com delicadezas, e rezar o terço no intervalo, mas se calhar fui eu que perdi já essas vidas, nem tenho já lembrança, só sonhos bastante maus do tempo em que fui delicado, e peço que me perdoem, pois, se perdi todas as minhas de Gato, suicidado numa ou outra, resta-me esta, quem sabe a última, a de cão, e dá-me para rir diante da sonsice dos que vêm com o ar de quem desconhece todo o mal, sim, porque não há sequer os acomodados, o plano de reforma para ex-anarquistas, não, nunca vimos que, de coser à linha, passam a uma máquina de costura, não os há traduzindo a metro, entregando umas coisas medíocres, toma lá, para o que é está mais que bom. Depois, e ainda mais, não posso deixar de me comover como toda a gente prescreve em relação à função do crítico, um tipo dá por si a ouvir o código deontológico da profissão de tudo o que sobre esta terra tem a veleidade de se proclamar autor, as listas que cada um faz dos mil cuidados a observar, nunca o rácio de polícias por ladrão foi tão alto como sucede na crítica literária, um tipo ainda só sonhou em arrancar uns rabos, já lhe estão a tocar à porta, algemas, correntes, choques eléctricos para os mais persistentes, a coisa de borracha na boca, e toma lá as estrelas que não nos deste, frita devagarinho, em suaves prestações. O que eu amo esta vocação em que cada aprendiz tem dezenas de mestres, todos dando lições, esses mesmos que não estão para se maçar, que o não fizeram senão daquela vez, e o custo foi tal, que chatices se arranja, em que sarilhos um tipo se mete neste pardieiro onde todos os acertos não pagam aquele deslize, é o inferno, a pena capital. E se o ar do inferno não suporta hinos, é bom saber-vos aí, ó educadores. Nem nos tempos de escola, no sétimo ano em que tive mais participações que qualquer outro, fui tantas vezes chamado ao gabinete, até na Gulbenkian, depois da minha desastrosa Índia, me aconteceu. Um tipo não tem do que se queixar no que toca à atenção. Tantos reitores, tantas madres superioras, que lindo colégio de freiras me saiu a vida cá fora, aqui, onde por toda a parte se lê: agora é a hora da nossa morte. Nunca mais se acaba a missa de finados. E não sou totalmente ingrato, não deixo de reconhecer o talento dessa ficção concorrente: façam-me outra vez o sinal da cruz na testa, borrifem-me de água benta, enumerem lá outra vez as vantagens de se viver uma vida de acordo com as vossas virtudes morais. Estou com a idade com que o outro deu o badagaio na cruz, um ladrão de cada lado, só por ter andado por aí a dizer que o pai dele é que era o maior do mundo, e eu, quantas amas tenho, e coitaditas, tão mal pagas, vêm fazer as pazes, fico comovido com isso de quererem reformar-me, quando vos oiço, é pena, ele até faz umas coisas jeitosas, a editora, e agora, diz a Margarida, que são as melhores entrevistas a escritores, obrigadinha, digo eu. Depois insiste nas boas maneiras, diz-me a Margarida que achou “rasteirinho” a forma de depreciar o outro, e o inho é nisto o que mais gosto, é o inho que me não deixa ver nela mais do que essa aia, dama de companhia, útil na hora de deslindar intrigas palacianas, arrevesar, adornar, perfumar as cartinhas que as senhoras trocam com os pretendentes a dizer que sim, que está quase, que insistam um pouco mais, mandem vestidos e flores. Falta-lhe depois o erro próprio que a faça merecer a sua fogueira, e por trás da “d’ama” é mais certo encontrar-se outra corte, as velhas formas de cortesia, mas ficar-se-á sempre aquém de uma guerra, seja em nome de fronteiras ou de outra coisa que o valha. E percebo por isso que me venha falar em erros objectivos, e dos que servem os livros “laboriosamente”, e ainda me fala, como jurista destas coisas, da “elucidação do caso”. Percebo que quem tem a vista afeita ao acerto do ponto de cruz achará que me perco, que não tenho bem a noção das proporções, e talvez vos perca, aos que não percebem como a agressão faz parte de um método, de quem prefere dar por si morto à pedrada nalgum deserto, pedindo às águas que tomassem a inclinação de correr para cima, ao invés de andar nisto à cata de ofensas à língua, à sintaxe, à ortografia. Percebo também que outros prefiram o monólogo interior, que se afinem assim, se respondam sem se dizerem nada que altere o estado das coisas, nem estejam muito interessados nesse “esforço demoníaco para se dormir de maneira diferente”. Marco... clama um. Pólo!, responde o outro. E vão-se buscando, consolando, consorciando, e acham bárbaros esses que chegam do árctico, que preferem temperaturas bem abaixo do zero, para que se vejam as fuças do mar firmemente desenhadas no gelo, aplicando nelas a sua força a golpes de machado. E também, para os que chegam à literatura e a defendem como a compensação para outros fracassos, pode ser que lhes provoque horror, e troquem por infâmia tudo o que sejam actos de violência, de absoluto destempero, e reneguem assim a noção de que talvez mais nada exista, e que a literatura não seja outra coisa além de “uma metáfora incestuosa, agressiva, gloriosa”. Agora, parece-me útil lembrar a leitura que fez Cesariny do exemplo desse tão leal rapaz: “Rimbaud abandona a sua literatura como um daqueles gauleses cuja selvajaria ele mesmo anatematizou e que os manes quiserem ver repetida pelo primeiro bárbaro da consciência poética moderna: ‘Quando se julgam suficientemente preparados, incendeiam todas as suas cidades, em número de doze, todos os seus burgos, em número de quatrocentos, e todas as habitações particulares; e queimam todo o trigo que não podem levar, a fim de que, destruídas as possibilidades de retrocesso, se ofereçam ao perigo com valentia maior’. (Júlio César, Comentário Sobre As Guerras da Gália). E eis, finalmente, o ponto onde quero e me vejo chegar, onde vos falo de uma ficção do contra, de tudo o que, sem se explicar, talvez justifique o desencontro de proporção entre as munições usadas e o erro tão pouco objectivo e com ainda menor propriedade de que vos acuso. E se insistem nas boas maneiras, ainda é maior a vontade de bater. Diz-me a Margarida que o outro traduziu grandes obras, olha só, té o Dom Quixote, deus lhe pague, e eu repito que tudo e tanto dá no mesmo, puxa-se o fio, pega-se por uma pontinha o pano e expõe-se o resto, vê-se a vontade de submeter toda a cultura ao raquitismo, a um género da imobilidade, “o calhau filosofal dos distraídos, a fronda dos tímidos, uma bisca dos preguiçosos”, uma forma de se realizarem as mais grosseiras ambições pessoais, e já que a tradutora vem solidarizar-se com o outro, como seres de uma sub-espécie, e me lê passagens do seu extenso currículo, talvez valha a pena lembrar outros exemplos, com Michaux: “Não tenhamos pontos de vista professorais sobre a arte. Porque é que Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud, personagens muito pouco recomendáveis do seu tempo, representam não obstante tantas coisas para nós e são de alguma maneira benfeitores? Não seguramente pela sua moral, mas por terem conferido um novo impulso vital, uma nova consciência.” Assim, e enquanto a Margarida exalta os falsos moedeiros que, nessa condição, se tornam estimáveis enquanto poetas, figuras auráticas da nossa miserável cultura, eu tenho a pretensão de rejeitar os bons modos que se identificam com literatura, hoje, e no nosso país, prefiro-o a inventar uma terriola, alguma Macondo aonde possa recolher um pequeno povoado e representar uma rábula qualquer, cultivando parábolas e provando o meu talento através de variações com algo de inusitado, num excêntrico desfile de personagens, copiando à vista, transferindo para ali os mesmíssimos crápulas, insuflando tudo, caricaturando sem denunciar nem ofender ninguém, enchendo de tralha e paisagens para deslumbrar os sentidos, acotovelar a imaginação, povoando ainda o cenário de bichezas exóticas, e fazer-vos isto na proporção que vos levasse ao aplauso, sim podia dedicar-me a isso, bulir a novela, alguns contos retribuindo a inspiração, dando-vos os espelhos que buscam para se mirarem discretamente, animados, labirínticos, e, depois, ir convosco lá onde vão quando fingem que se juntam, e se debatem, podia fingir que partia do zero, girando a bengalinha da imaginação, atravessando a rua, transplantando com jeitinho, num fundo suficientemente romanesco, mas, em lugar disso, a sórdida tessitura da novela que se desenrola nos passos que tenho em volta foi o que me sugeriu esta forma da crónica, e se há pessoas, grupos que vejo alegremente e em excursão, numas tais patuscadas, e tudo em nome da cultura, se elogiam, escorrendo como sopa, dizem enormidades, quase brilham inchados e me provocam um desejo de desmembrá-las, desfazer-me delas nalgum rio, pois escolho uma, agarro nela, zumba!, volto a agarrá-la, zás, puxo-a sobre a secretária, amasso-a e abafo-a, cago-lhe, mijo-lhe em cima. Ela renasce. E, no fim, não desando, mas fico aqui, enrijeço, e dá para rir com a forma como se desunham, se unem trepam uns pelos outros nos esforços para retaliar. Faço-vos, portanto, as personagens do meu conto imoral, tipos, caracteres móveis, e o modelo do espaço não é nenhum senão este, e aceito discutir se se pode expiar uma coisa destas, se há exorcismo possível, se não estou condenado a desfalecer sem ter alcançado nada, mas pouco me importa, pois queimei todo o trigo, destruí as possibilidades de retrocesso. Além disso, se houve um conselho que tantas vezes ouvi e sempre levei a peito foi esse: escreve sobre o que conheces. E não me vão dizer que sois um mistério para mim, que estou redondamente enganado, cego por fúrias que lavram numa doideira que tenho de mim para mim. Ignorar tudo isto seria pôr-me, como fazem, a maquinar uns pavores de segunda, a escarafunchar além quando há aqui de que me ocupar. Por isso, e por agora, avilto-me o mais que posso. Pode não ser a crítica mais nobre, mas tentarei ser leal, e se não é certamente a crítica que desejais, a minha arrogância é a de vir a convencer-vos que é a crítica que mereceis.

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