Já vimos o que o tão honrado tradutor fez de Rimbaud, como o empinocou e pôs a dançar num vestidinho de ir à missa, enquanto ele batucava um ritmo frouxo com a sua bengalita, já demos exemplos daquela versice sensaborona, do seu esforço para se safar naquelas águas "como um nadador que perde o fôlego e ao ritmo da respiração bebe golos de água", comparámo-los com as versões e "glosas" de outros, e tudo só serviu para que se desse palmadinhas nas costas, com as suas mãos ou as de uns desmiolados que cedem o seu juízo à direcção para onde sopre o vente, mas se o Serras não podia estar mais satisfeito, e se ainda faz gáudio desse calo de remador em todo o tipo de águas internacionais, mesmo que recolhidas a um chafariz ou bidé, também fizemos o suficiente por uma revisão da matéria no que toca à tradução de poesia, e ainda ontem tropecei em mais uma intervenção esclarecedora, e até me custa chamar mais gente para este disparate em que, a meio do sermão, me acho a afundar os peixes com as carcaças de pão, padruuuum!, e os patos a rirem-se, ainda acho, no entanto, oportuno ler o que escreveu Javier Marías sobre o assunto, num livro, por acaso, editado com o mesmo selo da “Obra Completa”, do chavalo genial. O título do texto do espanhol é “Ausência e memória na tradução poética” (está incluído no volume “Literatura e Fantasma”), e tem uma tese que nos seria bastante útil numa hipotética guerra dos cem anos à volta de questões de tradução... Então, tenham paciência os que só aí estão para ver calhaus a voarem, entretanto desçam sem pressas esta citação: “Com efeito, é coisa de senso comum considerar que a tradução depende, se baseia e tem a sua razão de ser na presença do texto original, que a possibilita e escraviza ao mesmo tempo. Essa presença activa priva-a de uma existência livre; é esmagadora e iniludível; impõe limites, mais ainda, regras, leis, modelos, de que o tradutor não pode nem deve afastar-se (...) Mas, haverá realmente? Ou, melhor dito, aqueles que assim opinam, terão razão ao considerar essa presença como característica essencial da tradução? Eu penso, pelo contrário, que o que é essencial na actividade de traduzir não é a presença do texto original, mas justamente a sua ausência ou carência. Porque a tradução também não é fotografia, cópia. Não pode sê-lo. Um texto, pelo facto de passar de uma língua para outra, sofre já uma transformação objectiva de tal carácter e magnitude que nunca poderia ser idêntico, nem será o mesmo em ambas (...) O tradutor, ao enfrentar a sua tarefa, sente o texto original como uma ausência. O que conta para ele e para o seu trabalho é a ausência desse texto na sua língua, na chamada língua de recepção, e por isso no sistema de pensamento dessa língua. O tradutor não reproduz, não copia, não decalca, entre outras coisas porque não depende de si fazê-lo, porque não se acha capacitado para isso. Plasma sempre pela primeira vez uma experiência única, irrepetível e intransferível; cria na sua língua aquilo que na sua cabeça está noutra língua. E digo ‘na sua cabeça’ em vez de ‘no texto original’ muito conscientemente, pois esse texto por si só, no âmbito da tradução, não é nada: é como um rumor de ondas que nenhum poeta escuta.” Ora aí está, e agora adivinhem quem traduziu este volume de textos de Marías... Não foi o Serras, foi o próprio editor da Relógio d’Água, Francisco Vale, que quando vem para a palheta até diz preferir as morenas... misteriosas e esquivas, difíceis de prever e o raio, mas depois sai com as loiras como toda a gente, para não ter de se maçar. De resto, acaba de publicar a maravilhosa antologia de Marianne Moore, “O Pangolim e Outros Poemas”, esse sim, um encontro predestinado entre autora e tradutora (Margarida Vale de Gato); abrimos aquele livro e estão as duas ali a rir-se, as sombras misturadas que dá aflição, a medirem-se uma à outra, trocar receitas, preparar bruxedos com que fins nem pressentimos, e enchem o caldeirão com víveres das duas línguas, quais batatas, aquilo é a água do banho do demónio, aquilo é que são temperos... Sim, aqui também sabemos admirar, preferimos até, mas com a parcimónia a que nos obriga o que é realmente de excepção. Voltando ao Serras, que diz que não sabe o meu nome, demonstrando a propriedade da crítica que temos feito ao seu Rimbaud bastaria notar as enormes reservas de todo o aparelho coisó-literato face a um marco editorial que, além do moço de recados, esse Pinto que por o não terem comido quando era ovo vive de exaltar todos os Santos, em tudo o que é tasco das letras, lá vai ele, estrelar-se, tu levas cinco estrelas, tu só levas quatro mas aguenta que daqui a nada já lanças outra folha e eu faço-te o convívio todo, reparem como, de resto, o calhamaço se afundou no limbo, não houve cá elogios desses dos taralhoucos a quem nada custa meter a mãozinha, abrindo o livro ao calhas, a ver a redondez da nádega, e dizer que sim, que é do melhor fiambre o que para ali vai, não, por uma vez, edita-se a obra toda de Rimbaud e é como se nada, até os nossos que papam tudo não quiseram nada com esta broa. Mas ainda há tempo; vamos ver se ninguém se lembra de vir pôr o pão na água e dizer que o azeite é do melhor. Mais interessante agora que já perdi a paciência para fazer testes periciais quando depois vêm essas lorpas encomendadas, que perderam o paladar de anos a servir nalgum refeitório, provam aquela insossa sopa, e, porque não caem fulminadas para o lado, mandam dizer que está boa para a cantina da escola, os miúdos que a mandem abaixo. Muito mais instrutivo, no entanto, é o Serras a descrever-me como arruaceiro, é, tudo graçolas malcheirosas, num desvario bruto e petulante, tanta carícia tola com que me vem mais este, sempre com uma reprovação de auxiliar educativo, põe-me falta por mau comportamento, pior educação, ainda me tacha de fascista, não obstante o facto de ser ele quem nem nome me dá, se pudesse calava-me. A culpa, é claro, está no tom, faltam-me as plumas, não comecei por “com licença, vossa excelência...” Interrompe-me: ó seu fedelho, labregote, malcriado, seu porcalhão! Pois, receio bem que o seja, mas repare, excelência, que essas mesmas armas, a mesma grosseria teria aproveitado tanto ao seu Rimbaud, que preferiu numa bata de colégio, não a vossa empáfia, mas as ‘conneries’, uns usos bestiais da língua, e não torça tão cedo o nariz, o uso escatológico também, merda nas fuças se preciso, de tudo isso se serviu o adolescente quando foi saber dos poetas e deu com a fila de pavões do seu tempo, abriu a braguilha, sacou-o e salpicou-os bem. Sim, admito que o tenha feito com maior audácia e risco, também embalado num talento maior, mas aí é como o povo diz: cada um dá o que tem e a mais não é obrigado. Agora, vir chamar-me de fascista, que rima tão pobre e tão gasta! Contando com o Quintais, já é o segundo da nossa distinta linha de pataratas a vir-me com essa este mês. Mas é sempre um empertigado oficial, com ganas de nos calar, que puxa essa treta do fascismo. É como gritar fogo!, e se hoje já ninguém acode, eu cresci com ele nas cuecas, de tanto ouvir que lavrava nas do Diogo. Que mal tem, o fogo? E mesmo que fosse só nas cuecas, antes isso que ser só cinzas à espera de algum ânimo ventoso. Elogiam-me demais. Mais um que mal pode com tantos pergaminhos e vem dar-me lições de etiqueta, primeiro isso, uns sermões sobre a honra e depois, também, a eternidade. Ainda assevera que só digo o que digo porque tenho as costas quentes (seria largas?)... O que me faz pensar que, se fossem outros os tempos, falava com este ou aquele, uns degraus acima na hierarquia, preenchia o formulário, dava o meu número, e, como por magia, os males do mundo seriam purgados, e eu filado por aí, voltando alguma esquina, arranjar-se-ia até uma cerimónia, o imbecil do crítico encostado ao muro e as patentes beijocando os fuzis. Fuzilado! Bem o mereces, ó fascista, gritariam os libertários. Não sendo possível assim do pé para a mão, e enquanto não se arranja alguma emboscada burocrática, um despedimento com muita a gente a pedir ao mesmo tempo, puxa da caneta de sangue, escreve no mural do Facebook, e lança-me aos chacais, infelizmente tão sem dentes, umas dondocas e uns queques, os da cultura-quermesse, uns temperamentos artísticos que gostam muito de rodas, e a quem a poesia interessa como tudo o que é para gostar. Com um bafo individualmente podre, colectivamente nauseabundo, lá vão sabendo uns nomes, que repetem nessa pronúncia de taxidermista, e são sempre a favor de todas as coisas boas e contra a generalidade das más, e aí está resumidamente a nossa vida pública, uma bela moral de cacetete, com a sua constante campanha de silêncio, e os coitadinhos são eles, queixam-se das calúnias que sofrem, da difamação, e quase se esquecem que têm a vantagem dos números, como se esquecem de tantas outras coisas que cansa repetir por serem tão óbvias. Um exemplo: esquecem-se de que “quem espera intensamente mudar, não perde tempo a admirar-se. Nem a tornar-se admirável.” Acusam quem sai da linha de portar-se como um criminoso; confortados com a imobilidade, servem-se da cultura, neutralizando-a, e ainda falam em nome da ordem, da moral, esquecendo que a sua moral é o maior de todos os crimes.
sábado, dezembro 29, 2018
Miguel Serras Pereira e os chacais (4)
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Margarida Vale de Gato
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