quinta-feira, janeiro 03, 2019

Bruno Vieira Amaral e a mentira na reconstituição parcial dos factos


"A longo prazo, impor uma história acaba por não satisfazer, no final é como se cada um só a contasse para si mesmo e isto não tem graça: se é apenas corroborada pelos correligionários, pelos acólitos e pelos temerosos servos, é como jogar xadrez sem adversário."
Javier Marías
"Assim começa o mal..."


A melhor ideia que possa fazer-se da ficção não a deixará enxovalhada ao ponto de se poder confundi-la com uma mera arte de produzir histórias, artifícios para nos arrancar ao tédio. Não serão ficções desdentadas como não será um sacrifício ritual que irá “encher os grandes buracos do mundo”. Contudo, é certo que há simetrias esplendorosas entre as trevas exteriores e interiores, e o homem muitas vezes não precisa de aventurar-se tão longinquamente quanto isso para arrancar ecos ao desconhecido. Alguns já o experimentámos, e estaremos só em alguma medida capazes de confessar até que ponto nos foram úteis esses actos aparentemente dementados, essas pesquisas tantas vezes cruéis, os modos de se debruçar sobre as zonas mais escuras de si, urrando para o interior de si mesmo como para um poço de onde se suspeita que possa ascender um ar estranho, que tome conta de nós, que, como possuídos, nos incline a agir terrivelmente, a experimentar esses processos de transfiguração que escandalizam a maior parte das pessoas. Essas pessoas que tomam a sua inocência por uma forma de sanidade. Lembre-se, a este respeito, as palavras de Herberto: “Os inocentes são por assim dizer as musas dos criminosos”. Curiosamente, e como ele mesmo nota, “há poucos inocentes, não conheço nenhum, e não se busque sobretudo entre as crianças: as crianças são monstruosas, eu sei, fui criança muito tempo, e o meu talento era monstruoso”. Também vos diria algo assim, tendo sido miúdo e praticado actos desses que tantos teriam como pavorosos, desses que fazem adivinhar um criminoso em potência, e agora, rindo, talvez se perguntem se não me tornei um. Mas seguindo adiante, podemos concordar que a realidade é irredutível a um organismo narrativo, por mais complexo, melhor afinado que seja, até porque a ficção não está fora, mas participa, e produzi-la não é obrigar a imaginação a olear essa máquina brutal, como não é fazê-la ajoelhar-se diante dela, correspondendo ao que vulgarmente se entende como os limites do real, pois então só iria “criar bolor e dormir, amontoar-se e depositar-se nas vidraças bem ajustadas dos livros”, mas antes, como contrapôs Artaud, a propósito do que devia esperar-se do surrealismo, esse espírito de invenção deverá “elevar materialmente o real até esse ponto em que a alma deve brotar dentro do corpo e não parar de amotinar o corpo”.

No texto que publica na última edição do "Jornal de Letras" (esse defunto que, se tem ainda alguma serventia, é justamente o de nele se fazer a defesa da virtude das nossas madames) defendendo a presuntiva abordagem ficcional que Afonso Reis Cabral fez do homicídio de Gisberta Salce Júnior, no livro “Pão de Açúcar”, Bruno Vieira Amaral monta um tal circuito de disparates que só poderemos responder-lhe indo ponto por ponto. Antes, porém, não fingirei que respeito este ofício de um fiel capanga das manobras de concertação por que opera o nosso meio editorial, e que apesar de organizada em diferentes legiões, promovem essa pax romana, uma paz bastante podre, por sinal, com base numa noção abrangente da cultura, interessada em tudo o que sejam paradas, demonstrações de força e vitalidade, desde que isso não passe por pôr-se em causa, contrariando, assim, aquela experiência da literatura de que fala Blanchot, a tal experiência total: “uma questão que não suporta limites, não consente ser estabilizada ou reduzida a, por exemplo, uma questão de linguagem (a não ser que este ponto de vista baste para abalar tudo). É a paixão de se questionar a si própria, e obriga aquele a quem atrai a colocar-se inteiramente nessa questão”. 
Ora, este consórcio ocorre já da forma mais leviana e obscena, enquanto aplana o terreno, mobiliza todos os esforços e canais para as suas campanhas de ordem mais comercial ou publicitária, num concerto em que diferentes órgãos de um mesmo grupo trocam favores e em que, amatilhados, os escritores se divulgam entre si. E se um cai sob a mira da crítica, organiza-se um esforço solidário para resgatá-lo, e assim se vai instituindo uma agência de seguros ad hoc, em que se acciona a apólice no caso de o escritor ter um azar, expor-se além da conta, tornando-se alvo de uma perseguição por parte desses maliciosos caçadores furtivos que põe em risco este tão delicado ecossistema. E para quem se lembre de puxar para si a metáfora e travesti-la ao seu gosto, vindo falar na importância de proteger a biodiversidade no campo literário, e lembrando que o exercício da crítica não pode dar azo a que se abatam elefantes (sim, também temos direito aos nossos escribas de grande porte, e ainda que não o sejam mais vale fingir que sim) na ânsia de lhes sacar as presas como troféus, e que, por isso, é imperativo protegê-los, é sempre útil lembrar o diagnóstico feito por Silvina Rodrigues Lopes (e perdoem-nos a pipa de massa que vamos encaixar ao usar, como referência, um título que reeditámos) em “Literatura, Defesa do Atrito: 
“Há uma tendência daquilo que se apresenta como pós-modernismo que é importante indagar de perto: trata-se da adaptação de grande parte daqueles que se apresentam como escritores às condições institucionais dominantes e ao mercado, o que significa que não produzem senão simples objectos de consumo, ao nível de qualquer outro artigo de supermercado. Essa adaptação vem negar a anti-institucionalidade (que não é apenas característica do modernismo, mas daquilo que, na sequência de Baudelaire, se designa como modernidade literária) em nome da acessibilidade da literatura, e de outros tipos de discurso, ao grande público, o que corresponde à negação máxima de qualquer dimensão inconformista. Aquilo a que se chama “grande público” só pode ser composto por gostos esclerosados, pelo que há de mais resistente à mudança, e por conseguinte pelo que há de mais anti-artístico, a negação do movimento. Aquilo que se destina ao grande público é a espectacularização, que esteriliza ao colocar a diversão como substituta da estranheza, tornando-se eficaz na relegação do humano para o nível mais triste da vida animal - a domesticação. Quem colabora nesta desvitalização da literatura fá-lo em proveito de uma posição de poder pessoal e de grupo que vai contra a memória e a dignidade daqueles que não usaram, e não usam, a literatura, aqueles que a retiraram, retiram, ao capo de poder, que é sempre o da fixação. A anti-experimentalidade declarada e a revalorização da noção de autor são dois sintomas de um processo reactivo que procura na pré-modernidade uma legitimação para o sacrifício do desejo às mãos do poder. Em muitos aspectos, o que é hoje uma vulgata pós-modernista repete o horror ao vazio -aquilo que vai contra a homogeneidade do ideal sem anular a universalização -, em nome das distinções marcadas no interior de um universal estável.”

Mas vamos então a esse atamancado refúgio que o nosso mestre de obras (BVA) construiu apressadamente para que o aprendiz não passasse a noite ao relento, sujeito a receber no lombo o chumbo, já nem digo da crítica, mas de qualquer leitor que tenha suficiente discernimento e se dê ao gozo de ler armado com uma pressão de ar, sabendo que não falta também à ficção portuguesa uma carrada de pombos lerdos, desses em que se pode afinar a pontaria antes de ir medir forças com algum Golias. Vou poupar-me, no entanto, e depois de ter deixado já sem pio uma tal de Ana Bárbara Pedrosa (que não teve o menor pejo em servir-se do seu tacho no site esquerda.net para vir fazer o servicinho de promoção do livro do amigo, numa recensão bem jucunda, acompanhada de entrevista, tudo como é próprio de alguém que se propõe a agente imobiliário das nossas Remax da edição), a ter de me sujeitar a nova reunião de provas no sentido de mostrar que, ao invés de uma verdadeira obra de ficção que constrói “uma realidade autónoma” a partir do caso Gisberta, aquele é um exemplo da aselhice com que os nossos escribas se mandam à ficção. Não vou também repetir o que já ali se disse quanto à premência de “contra-ficções” face ao tão liso, tão regular terreno da literatura portuguesa contemporânea, o qual raramente nos provoca um sobressalto. E, neste aspecto, até partilho com BVA a irritação diante dessas propostas de ficção que “me oferecem um mundo demasiado arrumado e polido quando sei que cá fora tudo é selvagem, caótico e imprevisível”. A questão é que “Pão de Açúcar” subiria, precisamente, ao topo da lista dos exemplos recentes de ficções nas quais se entra como “num quarto arrumado com uma organização artificial”. E não me parece tão importante que o “titereiro” elida o seu rastro no dispositivo que constrói como julgo necessário que nos force a deixar à porta tantas das nossas convenções sobre a realidade, e aja como um verdadeiro transgressor em face delas. Não lhe peço, portanto, que observe nenhuma outra moral além da que ele mesmo possa sustentar, e prefiro sentir-me arrastado pela sua tenebrosa relatividade, pelos exacerbados sentimentos que dão ao leitor a sensação de pender sobre o abismo, do que provar a sua habilidade na repetição de fórmulas narrativas que apenas nos conduzem através de um certo arranjo dos eventos. O Afonso sabe, de resto, que a minha primeira reacção ao livro foi de entusiasmo, vislumbrei nele um risco imenso, e achei que só podia tomá-lo um escritor que, apesar de jovem, se dispusesse a subir desta daninha realidade que conhecemos dos romances a algum outro inferno. Tendo lido as primeiras páginas, cometi até a imprudência de lhe pedir uma entrevista, e foi só depois que me dei conta de que não havia ali senão uma narrativa que extirpava o caso real das suas angulosidades, dos seus aspectos mais melindrosos (já lá iremos, prometo). Antes fosse uma obra imoral, realmente perversa, antes tivesse dado com um “profanador de túmulos”, alguém que se deleitasse em traduzir de forma melíflua o sofrimento para o leitor, um desnaturado que viesse sacrificar uma segunda vez Gisberta, e se gratificasse com a violência, agora servindo-se do cadáver dos factos para os influir de um vibrante terror estético. Antes isso do que outra distorção juvenil, uma narrativa que facilmente se adaptaria a guião de uma longa de estudantes de cinema, e que talvez conseguisse a proeza de obter a classificação PG-13. 
Não deixo, no entanto, de apreciar a cadeia de distorções que aqui se encena, sendo a última, e não menos apreciável, esta defesa de BVA. E nisto, faltando-lhe a autoridade e também o talento que justifique a comparação, lembro-me vagamente de Bártolo, uma das poucas figuras que me ficou das aulas de Direito. Aquele que terá sido o expoente máximo desta forma de aldrabice intelectual, foi o maior jurista da Idade Média, e se a celebridade deste genial comentador do Direito Romano persiste até aos nossos dias é porque este homem, segundo reza a lenda, quando lhe era pedido um parecer sobre um caso, não auscultava primeiro o sentido das leis, mas confiava de tal modo no seu poder persuasivo que tratava de orientar a sua argumentação de modo a contorná-las, se preciso, e assim parecia ser capaz de mudar a própria natureza do mundo para arrancar outra orientação das mesmas leis. Para este fim, e na medida dos seus parcos dotes, BVA foi desencantar o romance de José Cardoso Pires, “A Balada da Praia dos Cães” – assim, trata logo de confundir coisas de natureza totalmente diversa, segundo aquele princípio de que a analogia caberá sempre que esteja em causa realizar uma obra de ficção a partir de elementos de um crime real. Mas já antes no seu argumento – cujo curiosíssimo título, “A verdade imaterial dos factos”, o aproxima de uma peça de um jurisconsulto desses de trazer por casa para efeitos da promoção dos nossos emergentes valores literários –, nos tinha exposto o seu calcanhar de Aquiles. E isto porque, mesmo que o fio que depois estende estivesse perfeitamente tenso, a premissa sobre a qual assenta é tudo menos firme. “Se já conhecemos todos os pormenores de um caso, se o mesmo esteve em todos os jornais, se até já foi julgado em tribunal, se não restam dúvidas quanto às vítimas e aos culpados, o que é que o romance ainda tem para fazer ali?” Esta falsa pergunta coloca-a BVA na boca dos críticos de “Pão de Açúcar”, para depois atribuir à acusação o retardo de uma mera censura de ordem moral, “como se o romance, pelo facto de explorar um caso concreto e público, conspurcasse a realidade em que toca, como se violasse o espaço sagrado do real”. Quanto a isto, e uma vez que o arguente anda ocupado com a sua própria carreira de literato, cumulando prémios e tratando dos vistos para a expedita internacionalização, valerá a pena pô-lo a par da nossa posição no que toca a essa mistificação que também na poesia tem provocado tantos equívocos: Quanto ao real, quotidiano ou nem tanto, e à sua reabilitação hoje ou ontem, com recurso às mais exigentes técnicas, e à tecnologia de ponta ao nosso dispor, bem, só temos isto a dizer: que se foda. Não servirá mais de horizonte, desde logo porque a criação, em nosso entender, vai ainda a meio, e a rainha de todas as virtudes, como bem explicou Baudelaire, será sempre a imaginação. Estamos sempre a tempo de acrescentar à realidade novos planos, dotá-la de outros valores ou perspectivas, profundidades, e a ficção, tal como a poesia, ou a crítica, e todos os raios que ainda nos partam ou inflamem, são úteis nisto. E de resto, como aquele lá de cima bem notou, “a terra extravasa do real feito à imagem da merda”, e se fosse para isso, então também nós já nos teríamos mandado daqui, e nem Pasárgada seria longe o suficiente. Portanto, venha daí o romance, venham todas as obras do espírito, seja completando ou destruindo, tudo isso nos parece da maior utilidade. Com isto, espero que fique de uma vez por todas pelo caminho esse puritanismo que BVA nos tenta colar, como se nos houvéssemos proposto a guardiões dos “claustros solenes do caso real”. O que há é algo de natureza muito diversa entre explorar o real para se chegar à tal “verdade imaterial dos factos” e o ser-se exposto a uma reconstituição sumamente prosaica dos factos, por via de uma tosca reprodução ficcional. De resto, e a haver alguma crueldade em “Pão de Açúcar”, aquilo que digo é que esta está ligada ao golpe parasitário de um romance que precisa de conservar o elo às notícias de jornal, ao frenesim que rodeou o caso, e que só assim o seu artifício funciona, e depende, portanto, de uma extensão do crédito dessa imperfeita narrativa difusa, depende de uma extensão do luto, do horror, e funciona, por isso, como uma reunião de um público que vivenciou um pequeno trauma, e que se associa para efeitos de tráfico de boa consciência, a qual é ministrada pelo Afonso e os seus acólitos, terminando tudo numa sessão de autógrafos. 
É aqui que vale a pena dar a palavra às reservas expressas por Javier Marías, esse romancista que talvez até BVA esteja disposto a louvar, do mesmo modo que o fizeram alguns comparsas seus, que se alinharam como tontos, participando como substitutos dos membros da Academia Sueca numa apressada reunião de condóminos, honrando o espanhol ao elevá-lo ao topo das suas listinhas de supermercado enquanto Nobel não-oficial de 2018. Então, façam o favor de espreitar a crónica que publicou Marías a 14 de Outubro no El País, com o título “Literatura de penalidades o de naderías”.
Estou a ficar agastado e, por isso, perdoem-me se não vos mastigo a coisa para um português minimamente justo, mas, dada a desenvoltura com que os nossos literatos trocam a sua pátria linguística por essa fronteiriça expressão que é o portunhol (uma vala que terá sido tão útil em Guadalajara), não creio que vá perder muita gente se me limitar a citar no original: 
«Sí, todas son historias tristes o terribles, a menudo indignantes. Millares de individuos las han padecido (en el pasado, mucho peores) desde que el mundo es mundo. Yo comprendo que algunos de estos sufridores necesiten poner por escrito sus experiencias, para objetivarlas y asimilarlas, para desahogarse. Lo que ya entiendo menos es que ansíen publicarlas sin falta, que los editores se las acepten y aun las busquen, que los lectores las pidan y aun las devoren. Quien más quien menos las conoce por la prensa, por reportajes y documentales. A mí, lo confieso, en principio me aburren soberanamente, con alguna excepción si la calidad literaria es sobresaliente (Thomas Bernhard). Que la vida está llena de penalidades ya lo sé. No preciso que cada cual me narre las suyas pormenorizadamente. Soy un caso raro, porque no se escribirían tantos libros así si no hubiera demanda. Creo que ello es debido a la necesidad imperiosa y constante de muchos contemporáneos —una adicción en regla— de “sentirse bien” consigo mismos, de apiadarse en abstracto, de leer injusticias y agravios y pensar del autor o narrador: “Pobrecillo o pobrecilla, cuánta empatía siento, porque yo soy muy buena persona”; y de quienes les arruinaron la infancia o la existencia: “Qué crueles y qué cerdos”.
(…)
Cada una de estas obras, las de penalidades y las de naderías, suelen ser alabadas por los críticos y por los colegas escritores, que han hecho una regresión monumental y ya sólo se fijan en lo que antes se llamaba “el contenido”. Si esta novela o estas memorias denuncian injusticias, ya son buenas. Si relatan atrocidades, aún mejores. Si dan a conocer lo mal que lo pasan muchos niños, gays, mujeres o discapacitados, entonces son obras maestras. Puede que en algún caso así sea. Pero cada vez que leo sobre la aparición de una nueva maravilla “disfuncional” o de las características descritas, echo de menos a los autores que inventaban historias apasionantes con un estilo ambicioso, no pedante ni lacrimógeno, y además no procuraban dar lástima, sino mostrar las ambigüedades y complejidades de la vida y de las personas: a Conrad, a Faulkner, a Dinesen, a Nabokov, a Flaubert, a Brontë, a Pushkin, a Melville. Y hasta a Shakespeare y a Cervantes, por lejos que vayan quedando.» 
Voltando um pouco atrás, não apontei o calcanhar de Aquiles de BVA, e é aí que está o ponto nevrálgico de toda esta discussão. Porque, se José Cardoso Pires, a partir de um caso cujo desfecho era conhecido do público, chegou a uma verdade de outra ordem, e só o pôde fazer através dos mecanismos da ficção, como BVA refere, o mesmo não sucede em “Pão de Açúcar”. Como recorda BVA, o leitor do romance de Cardoso Pires será levado a concluir que “quem matou o capitão Almeida Santos não foi o indivíduo que apertou o gatilho, mas uma sociedade e uma época inteiras corroídas pelo medo, a grande criação invisível do regime” Acontece que no caso de Gisberta há também uma urdidura bem mais complexa, uma cadeia de factos que precedem aqueles que parecem estar na origem do homicídio de Gisberta Salce Júnior, sendo que em tribunal o que se determinou foi que a causa da morte foi o afogamento, ou seja, os três rapazes que a julgavam morta quando a atiraram, moribunda, ao poço, foram ilibados do derradeiro crime, e até hoje a família de Gisberta não tem como se conformar com aquela sentença. Mas isto, BVA, que julga conhecer os pormenores do caso, provavelmente até desconhece. Mas o seu desconhecimento do caso organiza-se numa forma de cumplicidade em volta de uma investigação que não foi levada até ao fim nem às últimas consequências. A tese aqui é de que o julgamento, que se realizou em 2007, serviu antes de tudo para encobrir as responsabilidades, não dos adolescentes que premiram o gatilho, naquela “dinâmica da violência colectiva” que BVA refere, mas por meio de uma série de actos de acções negligentes do Estado português, e do seu aparelho de acção social. Na sua “reportagem romanceada”, o Afonso não deixa de aludir de forma bastante vaga, como quem receia comprometer-se com algum juízo mais ‘profano’, ao papel que tiveram os agentes ao cuidado de quem o Estado deixou alguns daqueles rapazes, personagens sinistros de cuja presença só vemos a sombra debaixo da porta, e quem tiver seguido o caso com mais atenção pelos jornais saberá casar a alusão com a realidade, a do padre que estava à frente da Oficina de São José, e que aplicava em investimentos na Bolsa uma parte do dinheiro que recebia por acolher cada um dos miúdos. Há também alusões muito vagas às condições miseráveis em que os miúdos coabitavam, alguns deles arrancados às famílias para serem vítimas, já não do desleixo parental, mas dos abusos e agressões físicas e sexuais dos mais velhos ou de alguns predadores que tinham na instituição católica um belo espaço de recreio. Tudo isto são aspectos pantanosos que as reportagens à volta do caso foram trazendo à luz e que o romance de Afonso, com a sua “laboriosa preparação, com indícios semeados pelos capítulos, num mostra-e-esconde irritante, para usar uma expressão do narrador”, tão bem evita. Ou seja, involuntariamente, esta ficção deixa as coisas no mesmíssimo ponto em que estavam antes, não fica em nós a inquietação diante da “grande criação invisível do regime” que permitiu que Gisberta morresse naquela “cave imunda”, mas pior do que isso, pode dizer-se que esta ficção participa no encobrimento de um caso que deveria envergonhar o nosso aparelho judiciário, bem como o nosso sistema de acção social.

Posto isto, quando BVA se serve da sua pesquisa mais aturada enquanto biógrafo de José Cardoso Pires e nos recorda as palavras de um dos envolvidos no crime, condenado a uma pena de prisão e transformado em personagem pelo romancista, para notar o “incrível” que é um cabo da GNR revelar “uma maior lucidez literária do que alguns críticos”, então o nosso ensejo é fazê-lo engolir as suas palavras. É natural que um capataz dos esquemas editoriais, um roedor agenciável que nem soube estudar o porão do qual emergiu, ao analisar as circunstâncias de um crime se fique pela justificação “monstruosa” perdendo de vista tudo o mais. Daí, todo afanoso, saltando dos ombros de Yukio Michima, parte para elocubrações sobre uma ficção que “se alimenta do corpo simbólico de Gisberta”, adiantando-nos que “Gisberta era, acima de tudo, para os rapazes que a mataram e nas narrativas posteriores, esse corpo inacabado, imperfeito, incompleto”, e assim vemos desenhar-se-lhe o sorriso satisfeito de um titereiro de segunda que vê naquele homicídio “um lado de necrofagia, como também há na eucaristia, no consumo ritual do corpo de Cristo”. O que talvez não veja é a evidência terrífica de um corpo num tal estado de degradação que, mais do que ter a morte a actuar sobre ele, era já dela, um corpo como uma visão que nos ulcera, e não vê também o reflexo que os rapazes poderão ter arrancado daquele espelho que lhes dizia o pior sobre o abandono a que eles mesmos foram entregues, como não supõe que ao invés de um acto de necrofagia possa antes ter ocorrido ali um acto de autofagia. E se BVA chega a propor a hipótese da necrofilia, asseverando que o narrador deixa sugerido que “estavam a descobrir em simultâneo o poder da morte e do desejo sexual”, aqui, BVA já está ele mesmo a desejar que o romance fosse outra coisa, e bem se podem ler reservadas sugestões a partir da pobre narrativa que nos foi servida, mas o facto é que a execução é mais do que débil e trapalhona, está sempre “corroída pelo medo”, receosa ou incapaz de compor algo mais do que um sequenciamento das acções de acordo com aquilo que o esqueleto dos factos imediatamente nos sugere. 
BVA bem pode delirar e fingir que leu outra coisa, dizer-nos que “as passagens em que é descrito o homicídio não [são] sobre Gisberta nem sobre o sensacional caso de um transexual assassinado por um grupo de adolescentes num edifício abandonado no Porto, mas sobre a paixão e o calvário de um corpo errado no lugar errado, atingido pela primeira pedra atirada por um pecador”… BVA não é nenhum Bártolo, e até pode ter-se convencido de que talvez possa recobrir aquela mesma narrativa de um novo fulgor, se levar adiante algumas das possibilidades que este truculento drama bebido nas páginas dos jornais nos oferece, acontece que o lado obscuro é tudo o que já supúnhamos sobre os mecanismos do desespero que actuou ali. Ainda que apaixonada, a leitura de BVA seria tão ou até mais válida se nem mesmo houvesse um romance. Poderíamos perfeitamente estar a ensaiar a hipótese de uma ficção sobre o caso, e talvez agora se pudesse retirar dos factos a espontaneidade inconsciente com que a acção se processou. Pois se “cá fora tudo é selvagem, caótico e imprevisível”, depois daquele crime e da gestão de danos, de se terem escamoteado responsabilidades, escondido as suas outras vítimas, não se encontrará uma mais previsível e tranquilizadora narrativa do que a de “Pão de Açúcar”, uma história que vem simular a forma como a “máquina da violência” que vitimou Gisberta funcionou “como um remoinho que se serve de todos os sentimentos à sua volta – a raiva, a confusão, o desprezo, a indiferença, o tédio, o tesão mas também o amor”… Sim, podemos fazer soar todos esses guizos, mas, no fim, ainda estaremos a focar-nos e a tentar explicar as motivações das vítimas para se vitimizarem na hora em que os caudilhos se põem a salvo, muito longe dali. A hora em que toda uma sociedade se escandaliza, se enche de horror e repulsa por aquilo que produz todos os dias, gritando: "Que cruéis e que porcos".


1 comentário:

jojoba disse...

Excelente citação do Marías. Muito do romance atual não é muito mais do que um encontro entre a Mariana Alcoforado e o "Freaks".