PEDRO MEXIA. Português Suave
Em «Lá Fora», conjunto de crónicas editadas este ano, Pedro Mexia dá largas a uma tonalidade que se vem tornando cada vez mais comum nas letras portuguesas: uma tristeza vaga, levemente nostálgica, cuja razão de ser não se entende. Um mundo declinado em português suave.
Antigo director interino da Cinemateca, comentador político na televisão e na rádio, crítico literário e cronista do jornal Expresso, director de uma colecção de poesia da editora Tinta da China, consultor cultural da Presidência da República, júri de inúmeros prémios literários e, encimando um já extenso currículo político-cultural, poeta, Pedro Mexia publicou, em Abril deste ano, «Lá Fora», um conjunto de crónicas com prefácio de outro nome maior da cultura em Portugal, António Mega Ferreira.
Maioritariamente escritos para o Expresso, estes pequenos textos vão do bucolismo da Serra da Lousã à placidez da Figueira da Foz, passam por África, Brasil, Havana ou Londres e englobam histórias menores e pequenos apontamentos que tanto podem versar sobre temas mais mundanos (a ponte «25 de Abril», o «Café Império» ou Robert Falcon Scott, o segundo homem a atingir o Pólo Sul, por exemplo) como sobre literatura, cinema, música pop ou mesmo política – um dos melhores textos deste volume é, sem dúvida, «A sauna da democracia».
Se mérito há neste livro, não reside em mostrar, em toda a sua claridade e transparência, a pose de poeta-cronista munido do poder de construir o banal do ponto de vista da literatura e capaz de reconduzir (esta palavra é deliberadamente teológica) o mundo a um adorno estético – apesar de, como afirma Mega Ferreira no prefácio, em tom inocentemente elogioso: «nos textos que aqui se recolhem, tudo é literatura e tudo a ela se reconduz, como que a pretender demonstrar o axioma de Mallarmé: que o mundo foi feito para ir parar a um livro». É certo que esta pose se faz notar aqui ou ali, que estas crónicas se encontram embebidas em rendilhados literários, que o mundo, para Pedro Mexia, não existe fora de uma tradição literária e estética. E, pecado supremo certamente, caso tenha pretensões a existir terá de ser rapidamente recoberto por um sentimento edificante, uma memória tanto literária como sentimental. Como acontece numa crónica dedicada a Santo António dos Cavaleiros, subúrbio lisboeta pouco conforme a literatices de «tão perto, tão feio, tão sem fascínio» que é, as coisas só têm direito de cidade sub specie litterarum e este subúrbio incaracterístico, “nem remoto nem maravilhoso”, é rapidamente reconduzido à lembrança da «primeira rapariga» - na condição, claro, de ser tudo muito casto, um «companheirismo sem libido, um reconhecimento sem desejo», para não conspurcar com impurezas uma memória tão idealizada.
No entanto, apesar de o esteta comparecer constantemente na escrita, mesmo a literatura e todas as suas declinações, toda essa memória literária que é arregimentada para salvar o mundo, acaba por sucumbir a uma «tristezazinha» intencional: «prefiro a nostalgia ao saudosismo: em vez da vontade de regressar a um passado idealizado, a pequenina tristeza que é a memória de tempos idos». O diminutivo, de memória queirosiana, marca bem a tonalidade de praticamente todas as crónicas de «Lá fora». Desengane-se, no entanto, quem pretenda ver aqui um motivo melancólico, pelo menos no sentido que lhe confere uma digna tradição literária cuja sistematização filosófica foi elaborada pelo filósofo alemão Walter Benjamin. A melancolia, aberta por esse «amor à última vista», permite, nos seus melhores momentos, uma «beleza convulsiva», para usar uma formulação de André Breton, e é pouco dada à lamentação repetitiva, à autocomiseração, a essa «pequenina tristeza» de que fala Pedro Mexia. Digno de nota, na realidade, é o facto de este volume de crónicas poder funcionar como um sintoma, dado que não é caso único nas letras portuguesas essa invasão que transforma a escrita num exercício imbuído de uma tristeza cheia de pose – podíamos juntar, por exemplo, Marta Chaves, poeta recentemente editada pela Assírio&Alvim, e Filipa Leal, ambas constantemente melancólicas não se percebe bem porquê.
Este conjunto de crónicas, aliás, tem apenas duas tonalidades: ou Pedro Mexia está triste (com alguma coisa ou sem motivo algum, ou ambos ao mesmo tempo) ou está maçado. Quando o obrigam a ir ao parlamento ou a passar uma noite no Lux – quase que ouvimos «que maçada» dito em voz baixa –, fica ligeiramente incomodado, não ao ponto de recusar, mas ao ponto de sentir um pequeno incómodo, uma ligeira contrariedade, uma vaga adversidade. E o termo «maçado» é aqui usado de forma intencional. Mexia não está bored, para usar um termo de uma tradição que bem conhece, ou mesmo entediado. Tanto um termo como outro têm indiscutíveis pergaminhos literários, e remetem para uma tradição melancólica bastante conhecida – o tédio do flâneur, em Baudelaire, por exemplo. «Maçado», pelo contrário, que é hoje um vocábulo cujo desuso se anuncia, encontra-se na proximidade semântica da «pequenina tristeza», da pequena angústia, da pequena melancolia, da «morte suave», da «pequena cidade balnear» que é a Figueira, da pequena placidez. Corresponde a um incómodo, mas em versão ligeira, vaga, como o galo de que fala na crónica «Um Cavalo nas Olaias», que, colocado debaixo da janela, apoquenta o esteta ao ponto de pensar no assassinato do galináceo – mas rapidamente salta uma referência a Hitchcock, como que a salvar esteticamente o incomodativo «solista das madrugadas».
Tudo nestas crónicas, de facto, é em modo pequeno e apetece qualificá-las apenas através do uso de diminutivos. Apesar de Pedro Mexia multiplicar a melancolia e seus derivados - «nostalgia poética», «nostalgia jurídica», «joie de vivre melancólica», o «tempo que passa veloz», a referência mais do que óbvia à Londres «chuvosa, desagradável à noite» –, o que resulta destas quase 190 páginas, se descontarmos a pose literata que vê como o culminar da civilização estar sentado à frente do British Museum, a um domingo, a tomar o pequeno-almoço e a ler os volumosos jornais ingleses, é uma melancoliazinha tristonha, como se o literato que percorre as livrarias de Charing Cross com o London Review of Books e o «mais sucinto» Times Literary Supplement debaixo do braço nunca tivesse deixado de ser um Eusebiozinho de Arroios, sorumbático, tristonho, de «olhos mortiços», atacado por um excessivo amor a alfarrábios e às coisas do saber – mas sem a perversão que o Eusebiozinho de Eça tinha.
Se pode haver um traço de mau gosto, no mínimo, quando «estetiza» o incêndio de Pedrogão, basta olhar para a primeira crónica reproduzida no livro, «Mais uma volta», para que esta «pequenina tristeza» surja em todo o seu despudor – o único excesso neste conjunto de textos, na realidade, consiste na forma como esta é alardeada. Falando sobre o fim da Feira Popular de Entrecampos, esta não poderia faltar e inunda o texto logo a partir do primeiro parágrafo:
“mas o certo é que, há doze anos, quando a feira acabou, senti uma tristeza que não sabia de onde vinha, como acontece às vezes com a demolição de um edifício, de um quarteirão, de alguma parte da cidade que nos era indiferente mas afinal nos fazia falta.”
Poder-se-ia pensar que a Feira Popular, afinal, fazia falta a Pedro Mexia, não fosse ter começado por dizer exactamente o contrário, que nunca sequer gostou dela: “nunca gostei da Feira Popular, sempre me embaraçou um pouco, e tenho mais recordações más do que boas”. Quando se chega ao ponto de se sentir nostalgia por algo que não se conheceu, não se viu ou, como é aqui o caso, nunca se gostou, ou há um elemento jocoso ou, então, atinge-se um limiar perigoso de autocomiseração, um prazer um pouco mórbido numa nostalgia vaga. E, do ponto de vista desta «pequena tristeza», tudo quanto surge só pode ser igualmente pequeno, igualmente tristonho.
«tomei a Feira como exemplo de uma Lisboa meio recordada, meio nebulosa, a Lisboa provinciana e encardida dos anos 1970, década de alegrias comezinhas, tão tristes quanto as tristezas, de uma melancolia descontente»
Não conseguindo fugir ao lugar-comum da cidadezinha triste e melancólica, com seres comezinhos, imbuídos de tristezas ligeiras, vagas, tudo nestas crónicas é destilado em português suave, portuguesinho até à medula, carregado de diminutivos. E em todas as viagens lá fora Eusebiozinho leva na mala uns óculos tristonhos, meditabundos, para ver ao longe, e com os quais perde países.
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