quarta-feira, dezembro 12, 2018

O Sábio de Bandiagara, uma aproximação



texto lido na apresentação de "O Sábio de Bandiagara. Esconjuros, Ebriedades e Ofícios", de Zetho Cunha Gonçalves, ed. Maldoror

Li um poema deste livro a uma mulher que, dali a pouco, viria a revelar-se algo enfadonha, e não o digo porque me desagradara antes ou o faria depois, isso também, mas primeiro notei que se fazia prisioneira de uma tentação daninha, e já aos primeiros versos de um poema de beleza simples, encantatória, luminosa, esboçava uma reacção desnecessária, como se já o mundo não segurasse grande mistério e, com uma certa repulsa, dava provas da sua frouxa intuição. Foi depois, quando o poema veio segurá-la rudemente pelos pulsos, que acabou por não ter escolha e entregar-se-lhe, como é imperativo que aconteça, pois uma mulher ouve a voz de tantas outras, e empalidece perante a magia intrigante de tudo o que, apressadamente, julgou ser subjugação. Há um momento em que não mais o seu pobre acto se sustenta, não mais está tão segura na sua pele, mas se vê a linha caída, tanto, que já se vai descosendo, e percebe que lhe falta o dom perverso, não tem reposteiros no seu silêncio, não é capaz de dele sair ateando fogos. Aí, não lhe restou outra hipótese senão começar a vestir-se discretamente de uma incerteza apanhada às peças do chão, essa sombra que ali estivera sempre, amparando esta mulher que, pouco antes, não tinha mais que a história dos seus desastres, um ar de quem está ainda a meio de tudo aquilo, como se o tempo não pudesse separar nem os episódios nem aqueles que a sovavam, e tal era a ganância que logo se envolviam uns com os outros em novas rixas, tudo em simultâneo, ondas abatendo-se. Ela assegurava-me que tinha em casa muito que ler, uma grande pressa, como quem ouve últimos avisos na estação de comboios, mas no olhar a luz parecia há muito apagada, como quem segue a frase de uns livros para os outros, uma linha que leva presa nos lábios por um anzol. E não era este o poema (lá chegaremos), mas não resisto à insurrecto e, bem assim, quase abjecta sedução que nos mostra “a mulher com máscara de lodo”, esta que, não se sabe de onde, de que lugar sobre esta terra, nos fala tão perto provocando tal terror e gozo, quando diz: “Tenho a minha cona porque sou mulher/ E tu vais comê-la/ se for para a tua verga, animal homem./ Comida de cão. Comida de urubu-de-cabeça-preta./ Lambe-me o cu, nariz de cachorro,/ lambe-me a cona./ Come a minha merda, Animal Burro.” 
Lembro-me de outras coisas quando me falam tão perto assim. Sei como há um fruto amargo que se trinca directamente na boca de quem nos diz a verdade, aquela que nos sabe como a própria morte e qualquer coisa depois, uma canção que se ouve noutra divisão, o perfume e a respiração de raízes e ramos de uma macieira e, raiando o escuro, um brilho de ouro. Calamo-nos. Não temos grande escolha. Diante das coisas que actuam primitivamente em nós, somos animais muito simples, a natureza impõe-se-nos com o peso de cada um dos seus anéis, a cadeia ancestral dos seus ritmos, uma “serpente celeste”, um cometa rasgando os céus. E lembro-me ainda de que as coisas que maior fascínio em nós exercem nos obrigam a buscar tão longe as comparações que nos mudamos, viajamos, assim, há poemas que se recebem como acontecia aos antigos, apanhados no leito, à traição, expirando de uma dose de veneno que se toma pelo ouvido. Estamos à mercê, em qualquer lugar desta terra, desde que possamos ouvir, contando que estejamos vivos, aptos a ser tomados, possuídos, pela vaga bestial dos cantos em que as imagens recorrem a memórias anteriores à própria vida que temos levado, nos lembram dos sentidos que se debatiam no caos da literatura oral, quando éramos tão mais velhos, mais sábios para o que conta, aquele entendimento com o que respira debaixo da terra, e tão mais novos no que respeita às forças, vigilantes, ardorosos… Ainda não é este o poema, e nem estou certo que lá chegue, mas apenas de que o gosto que se ganha é o de perder-se em nome de uma revigorada fidelidade às coisas, desvios que se abrem a novos caminhos: “Os teus passos não escolheram caminho algum. Quando pisam/ o pó, são rumores que crescem/ através da noite; rumores que nos obrigam/ a armazenar a memória das tormentas:/assim viaja a terra pelos nossos pensamentos.” 
As viagens aí estão para se esbater contra as paisagens, senti-las mudar-nos até a cor dos olhos, ter mais sangue nas veias, passar mais depressa pelo coração, esmagá-lo contra impressões irrepetíveis, sabores que nos tornam infinitamente desconfiados de tudo o que nos prometemos alguma vez, porque é tão fácil ser soterrado em si, abandonado à corrente. Como quem encosta o ouvido no chão, sente um tremor cobrir toda a superfície da imaginação. Apetece ir junto, cantar com tantos cascos sobre esse piso: “Eu sei/ Que a minha carne está visceralmente mordiscada, perdida/ Para o perturbado peixe no meio de cascos ferrugentos/ Passei por eles no meu caminho.// Também com o pão e o vinho/ Preciso da partilha da privação e da derrota/ Passei por elas no meu caminho.” 
Como a vida, também um poema, ao ferir-nos intoleravelmente, é algo que se deixa a meio. Isto contando com um apuro de tal ordem que o vento se pegue consigo mesmo em qualquer página, faça vozes, desfile infinitos dramas e personagens: “já consumi múltiplos sóis,/ Por isso, na água, a minha memória descamba/ Morro e revivo como o mar/ Em cada sopro que teria que exalar;/ Em vez de ondas, desejo noctilucal/ Para ver se o meu duplo entre os homens/ Pode ser refulgente.” 
O que conseguiu Zetho Cunha Gonçalves neste assombroso livro foi dar-nos tantos venenos, mais sensações de que se possa morrer, e o que este sábio de Bandiagara nos traz são os frutos rolados que nós, sozinhos, já não colheríamos, intimidades que conhecem os pássaros tendo aprendido o caminho ao longo de gerações, bicando como quem beija, acabando-se em grandes números, recolhendo às “Árvores microscópicas de vetustas florestas/ Roídas pelo sal e o caruncho dos séculos”. Esta não é uma recolha para reflectir friamente distâncias, nem calculá-las com instrumentos, sobre mapas, mas para verter nelas a alma, lágrimas, suores, conhecer em detalhe as suas guerras, ser ferido em cada uma, viver o nascimento dos desertos, e reinos de faraós... Estou a citar num despropósito de quem troca os passos numa bêbada exaltação, de quem tem o sangue empurrado por tantos remos, quem absorve os afogados, quem aprende a ler tudo numa página única. Migrações entre continentes, a passagem de testemunho, formas ancestrais de semeio, a mistura de espécies e saberes, essa atenção que torna possível escutar “a floresta a soluçar”. Isto são decalques, como ler pela noite fora e sentir o silêncio bichado, rumores na pele das coisas e um calor que sobe a tal ponto que ferve a panela com tudo o que se tinha dentro. E há tanto aqui para dividir com os deuses e as formigas. Tanto que escutar no modo como a palavra escrita se solta, rejeita o sentido que se fixou, pregado com pregos, e nos leva à declamação, ao insulto e à prece. 
Comemos ao romper do dia como ao anoitecer, com o sol e as outras estrelas por fios, tudo emaranhado, tudo à disposição. Raro é o livro que nos encoraja assim, a ver as coisas além do seu arranjo entristecido, com o relevo que as eras conferem à vida, um livro que nos arranca à pequena experiência, comum, biográfica, tão mortal e comezinha. Mas deixem-me citar, unir de novo os pontos a partir das coisas de baixo: “Atira com o meu prato ao chão/ a terra comê-lo-á um dia/ assim é feita a vida/ a térmite rói a raiz/ a galinha engole a térmite/ o homem come a galinha/ a fera come o homem/ paciente a terra espera/ olha sem olhos/ observa o besouro/ sem palavras diz-lhe o besouro:/ Eu imito Guéno o teu criador/ Guéno que te roda o dia/ Guéno que te enrola nos teus sentidos/ e te faz dançar na eternidade./ Fatalmente a vida sobre a terra/ consiste em se olhar/ e em se entredevorar/nós nos comemos/ nós nos voltamos a comer/ até que a terra finalmente nos come.” 
Entretanto, e nisto, bem vêem como já me esqueci daquela a quem o poema, vendo-a nua, sem graça, obrigou a um certo decoro, e, melhor, perdoou a fraqueza que me fez encarar as coisas tão mesquinhamente, do avesso, e quase me esqueci do poema que lhe li. Não – agora me lembro de que lhe pedi que o lesse ela, e o fez, sem se assoberbar ou comover, seca, duramente como a terra que me há-de comer algum dia. E na boca dela eu senti o meu próprio corpo, desfeito, desde a sua mais breve e vital ilusão até ao peso só dos ossos. Tratava-se, apropriadamente, de uma elegia, mas como não lhe dei o livro, não imagino que possa voltar a lê-lo, como eu fiz, como farei, e alguns de vós, que o tenham já ou venham a ter entre as mãos, o poema que começa na página 85, quando o sol se torna amarelo, anoitece misteriosamente, e “a morte do Inca reduz/ o tempo que dura um bater de pálpebras”, e quando, anunciada a morte, o outro mundo nos oferece um vislumbre. 

Sem comentários: