Cadeia alimentar
“O tráfico de má-língua miúda era uma das ocupações desta gente. A maldade, que teria exigido um vigor desconhecido destes temperamentos enervados, não estava porém, tanto quanto pude julgar, na base da sua maledicência: mas sim o enfado, a futilidade, o instinto gregário, sem dúvida também o incómodo que sentiam ao avaliar, bem dentro de si, a profundidade da sua indiferença, e ao confessar a si próprios que, no mesmo momento em que afirmavam por conveniência convicções artísticas modernistas, o seu gosto espontâneo levava-os para o romance naturalista, para a poesia parnasiana e para a pintura pretensiosa.”
Olivier Rolin, “Porto-Sudão”
Quem cata luminescências devastadoras em páginas tão difíceis de virar, essas que são o trabalho esquizofrénico do poeta com quantos críticos e leitores pode dividi-lo dentro de si, desde a inspiração à espinhosa convicção de que um poema nunca está acabado, mas é simplesmente abandonado (Leonard Cohen), e tudo para mandar abaixo, numa linha, esse adversário admirável, o leitor ideal... confessará que anda nos versos como garimpeiro, buscando a dose robusta para que lhe marque o sangue por gerações, atrás dessas descobertas urdidas na gramática e que parecem afectar-nos o ADN, visões inexplicáveis, tumultuosas num segundo e logo depois calmantes como aquela “feérica praia muito limpa/ coberta de pancada e água escura”. Quem anda nisto não o faz por menos, e nos melhores momentos goza a condição de um drogadito. Vai aos livros com os olhos revirando-se loucos nas órbitas. O leitor de versos cheira a ver se encontra quebras na prosa, rugas de sentido pavoroso que suspendam o curso do mundo; busca essas resiliências como quem traz uma coceira entre a pele e a consciência, fundo. De tudo o que coça a sua sarna, alivia-a e logo a intensifica mais, porque o seu culto é feito em nome de um desequilíbrio fundamental. E o que há de mais atroador e encadeante dos dois lados de um verso é a intimidade entre um predador e a sua presa, no momento em que, tendo-se-lhe lançado à jugular, a sufoca, e aguarda inebriado enquanto a pulsação do outro vai descendo degraus até que se extinga. Ao passo que a presa deixa o terror e quase agradece esse firme aperto, o nó do momento em que o peso da carne se desfaz na boca do outro, e há como uma libertação, uma entrega. Porque na derrota se obtém uma espécie de triunfo.
Daqui partamos para uma constatação dessas bem redondas, uma ampla mesa em volta da qual possamos assumir os nossos lugares: “Cada época tem os seus mártires, os seus santos, os seus heróis, e os seus palhaços”. Não é minha a frase e, por pirraça, não vos direi onde fui buscá-la. Dando seguimento ao que escrevi sobre o passo em falso da Golgona, e sem margem para me compadecer de alguém que nem o embate aceita, antes prefere fazer de morto, deixar que passe, que passem a outra coisa, o que mais custa é notar como tudo se tornou apenas desonroso – no campo literário só resta o sangue muito frio de umas espécies capazes de largar a pele e seguir como se nada fosse. Nisto tudo, indiferente para quem parece chegar aos versos como se não lhes restasse outra coisa que servirem um último palco para um último e deplorável protagonismo – dizendo piadas, traficando sarcasmos, entre quem não hesita em “situar-se no território da impostura”, sorrindo largamente para mostrar todos os dentes podres da época –, interessa-me menos discutir o acto de predação da poeta que desenhou um pequeno cadafalso e ofereceu um prémio pela própria cabeça ao dar ao livro o título que a incriminaria, e mais me interessa é o segundo acto de predação, desta vez o desse que, de repente, se apanhou com uma arma fumegante, e ao invés de oferecer uma bordoada bem dada porque merecida, logo esticou a corda, e provou uma vez mais o seu rudimentar talento para chafurdar na lama. O Fialho que nos coube é esta personagem-tipo, com “meio-dedo de crista” e as naturais “presunções de intelecto remexido”. E não há nada como topar a ansiedade com que se abalança sobre a presa e, não contente com meter-lhe os dentinhos, reclamar uma bela refeição, cai no exagero e logo parte os dentes. Senão veja-se como, ao sobrepor o poema original de Jorge Calvetti e a glosa da Golgona, não contente, ainda aproveita para ir buscar o exemplo de Tony Carreira, para nos dizer que, “por muito menos”, este foi achincalhado recentemente. Por muito menos, diz-nos o palonço, o cantor que vendeu dezenas, talvez centenas de milhares de discos, fazendo uma fortunaça com as canções de outros, depois de algumas mudanças no arranjo musical e de as verter para português, e, por muito menos do que fez a Golgona, foi obrigado a pagar uma indemnização. O que o Tony Carreira fez é nada ao pé do que fez ela ao surripiar o contorno, ritmo e gosto de um poema daquele argentino. Veredicto: queime-se a gaja. Ora, este empertigado professor de moral de um liceu que mantém arrestado nalgum canto daquela cuca, pastor de um beatério de tristes hienas, passa os dias a bulir elogios fúnebres para uns autores de segunda ainda nem mortos, e há-de arrastar-se até ao último dos seus dias numa estéril agitação, à boleia dos "estímulos" que saca a cada um dos tropeços, percalços e mesmo sacanices daqueles que, por assombro diante da rosa, escondem a troca que fizeram, se descartam da honra nesse rastro irremediável de quem se deixou enlouquecer pela luz que, em torno do outro, nos deu uma silhueta de nós próprios, como uma pele mais viva, debaixo daquela que levamos morta. Trata-se de uma dessas raras ocasiões em que não se sabe ao certo quem é predador e quem é presa, porque os dois se confundem, não num combate mas, entre perseguição e fuga, numa espécie de dança entre a vida e a morte.
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