A bandida e a praga de chatos
Longe de mim vir a terreiro para defender seja quem for de acusações na sequência de assombrosas gatunagens, glosas que tiram o contorno, o ritmo, versos tal e qual, e em que se sonega o autor moral do crime que vem a praticar-se, sacando-lhe a intenção numa apropriação e reescrita, e, pior, copiando o arranjo dentário, mandando fazer uma dentadura para morder o braço do leitor como faria o outro, longe, longe de mim (ah, o que eu sempre quis começar um texto com esta expressão enfatuada), mas se não deixo de compreender a carga de suspeita que agora se lança sobre a obra da Golgona, sendo de admitir que haja por ali outras incidências em que, mais do que sacar um verso, um impulso, a direcção de um vento, haja toda uma dívida que começa na arquitectura e desce até aos pormenores, sendo mais que tudo condenável o coroar-se com o verso de um autor obscuro, um poeta desconhecido mesmo dos mais informados leitores portugueses de poesia – o que exclui a ideia de uma intertextualidade, pois se espoliou o outro, de uma forma que nem se pode apreciar (e convém que haja alguma violência no furto, até para causar alarme social) –, não gosto das filinhas de patarecos, estas que formam pelas bandas onde raramente se produz alguma coisa que cause o menor abalo, tenho mais vontade é de pedir ao justiceireco de capa e espada das Caldas que, além do belíssimo serviço que prestou ao tropeçar no poema original, expondo a glosa abusadora, nos fizesse também ele o favor de ir roubar mais coisas lá fora, de forma mais ou menos assumida, mas que ainda mostrasse o talento para ensaiar uma releitura, desviando, maltratando, traduzindo mal, mantendo os ossos mas deitando-lhe outra disposição ao nível da carne, saindo de uma batalha, de um drama fecundo, e levando a corneta mesmo que para uma mera insolência de salão, uma tão calculada pose de miúda reguila, de língua de fora, pois que entre gente que mal se assina, mais azucrina, deixa o cão na varanda do poema, a ladrar e esfalfar a paciência da vizinhança, vem-me esta virgem pestilenta, em que ninguém pega, queixar-se das indecências daquela poeta 'dissoluta', que pelo menos faz a cama onde e com quem quer. Diz ele que, por vezes, lhe ocorre “a possibilidade de alguém estar no outro lado do mundo a ler um texto que me saiu do pêlo, apropriar-se dele, mudá-lo para a sua língua, publicá-lo, ser felicitado pelo feito, etc.”… Tem graça porque isto é daquelas coisas que ocorrem justamente àqueles que só do outro lado do mundo (mas que mundo?) os imaginamos a serem felicitados por alguma das coisas que publicaram cá, vendo assim alguma justiça ser-lhes feita, num efeito a la Cyrano de Bergerac, já que neste lado do mundo, com todo o génio, todo o seu impoluto talento, as felicitações são essas lambidelas trocadas entre a rataria que não precisa de copiar nada pois só reproduz o génio imundo e descerebrado que deflagra e se dissolve ao ritmo da mais banal consciência e sensibilidade das coisas. Assim, sem defender a Golgona, assumindo que foi mais longe do que seria aceitável na sua liberdade de pilhar horizontes menos à mão, e que isso acontece por privar-nos das coordenadas que situariam o seu poema como uma bela glosa, também adianto que prefiro chegar a um poeta em segunda mão, mas vivo, respirando noutra voz, do que esbarrar nestas antas que, de tanto zurrar, não passam de barreiras opacas, arame farpado, e que, sem brilho nenhum, sempre que não reproduzem ou traduzem fielmente, informam sem deturpar ou estrangular com açúcar e afectos, apenas nos desgastam, estragam, cortam o fio, e, no geral, tiram à poesia, tiram à literatura, e vão dar a esse imparável curso desgostoso, esse rio de mijo e dejectos. Como leitor ainda prefiro ser enganado, ludibriado, a ser aborrecido. Se aquela ainda pode exigir de nós o perdão, já esta retira-nos simplesmente o desejo de viver. E o que me dá mais pena é que tenhamos tantos guardas prisionais, freirinhas e padrecas vendendo a redenção de joelhos sobre um altar qualquer, e isto para tão poucos (ou tão pouco empolgantes) ladrões.
Fala um soldado da conquista (Jorge Calvetti, tradução de Henrique Manuel Bento Fialho)
Vim porque me pagavam
e eu queria comprar espadas e mulheres.
Vim porque me falaram de montanhas resplandecentes
como um entardecer no mar
e como o ouro com que haveria de me vestir quando regressasse.
Mas só encontrei flechas envenenadas,
humidade e mosquitos.
Conheci o terror, noites sigilosas,
índios vestidos com sua beleza sinistra,
a força de uma terra que nos dobrou
como a sede aos animais,
e a movediça mortalha da selva.»
«Alguém falou de honra a bordo.
A bordo
falavam e rezavam com lentas mãos sobre livros dourados.
nessas mãos se apoiaram o grito e o desespero;
com essas mãos escavaram a terra que nos iria cobrir.
Alguém falou de «história» e de «futuro»;
eu apenas penso no que perdi.
Creio que tudo é igual,
as mentiras que nos disseram e as verdades que encontrámos.
Haverá sempre loucos que viverão de palavras,
e sempre o mundo misturará com a mesma indiferença
a vida, que cresce no esquecimento,
a glória, que se arrasta,
e a laboriosa cobiça da morte.
Vim porque me pagavam (Golgona Anghel)
VIM PORQUE ME PAGAVAM,
e eu queria comprar o futuro a prestações.
Vim porque me falaram de apanhar cerejas
ou de armas de destruição em massa.
Mas só encontrei cucos e mexericos de feira,
metralhadoras de plástico, coelhinhos de Páscoa e pulseiras
de lata.
A bordo, alguém falou de justiça
(não, não era o Marx).
A bordo, falavam também de liberdade.
Quanto mais morríamos,
mais liberdade tínhamos para matar.
Matava porque estavas perto,
porque os outros ficaram na esquina do supermercado
a falar, a debater o assunto.
Com estas mãos levantei a poeira
com que agora cubro os nossos corpos.
Com estas pernas subi dez andares
para assim te poder olhar de frente.
Alguém se atreve ainda a falar de posteridade ?
Eu só penso em como regressar a casa;
e que bonito me fica a esperança
enquanto apresento em directo
a autópsia da minha glória.
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