sexta-feira, novembro 30, 2018

Um acto solitário


Resposta ao texto de António Cabrita no Hoje Macau 

"todo o acto premeditado ou todo o acto leviano tem a sua própria guilhotina" 
António Maria Lisboa

Não me esqueço que “não é impunemente que se escrevem coisas”. Ainda fiz a escola básica, sei esse pouco que serve para o mais, e para ter cá comigo que a guerra não é só lá, onde a gente a quer fazer, pois que no dia em que damos com o nosso nome entre as baixas, e vimos com tantos membros ao peito pedir descanso, logo ela nos segue, como sei que isto de cultivar as flores do terrorismo é um modo de trazer o cheiro do inimigo na pele. Um dia, para se dar paz, um tipo faz uma cruzinha no coração e entrega o peito à última das balas, que é sua. De qualquer modo, no saldo das idas à guerra, conta mais, no fim, o gosto com que se leva do que aquele com que se dá. De cada golpe que se inspirou, é bom guardar o sabor, tê-lo nem que seja em pó, para tempero do ocasional pesadelo. E sobre o que António Cabrita ali diz espantará alguns, talvez, se disser que, com os anos que se passaram, com as releituras que fui fazendo de “A Morte Sem Mestre”, tendo a aproximar-me do que diz, e estou cada vez mais longe, mais perto de repudiar a convicção que me serviu de embalo para empunhar o cutelo com ganas de cortar a cabeça a uma tempestade. E aqui acho útil enxertar uma nota do Cilleruelo com que me deparei há uns dias, lembrando como os antigos diziam que duas coisas se vêem bem separadas ou porque uma se afasta muito ou porque as duas se afastam um pouco. No caso da sumária “execução” que assinei a propósito daquele livro de Herberto Helder, se ainda por ali acho sinais de afectação ou soberba, não seria honesto se não dissesse que hoje abro aquelas páginas e me apanho transfixado, sem defesas diante do apelo desolador desse livro, mas não tenho remorsos, não há arrependimento, não tenho sobre o meu juízo uma tão alta opinião que julgue necessário envergonhar-me do que escrevi, e, a este respeito, tenhamos pelo menos uma coisa clara, isto: ao escrever sobre o monstro AgáAgá o risco nunca deixou de estar do meu lado. Simplesmente, e naquela hora em que me pareceu que todos (ou quase) competiam por meio de interjeições, uivos e gritinhos orgásmicos, com notas de leitura que se liam como exclamações sucessivas, ao ver como se umas princesas e dianas já se entregavam a êxtases de possuídas, e ao invés de se falar de poesia, parecia que estávamos a assistir a sessões espíritas, vi o que me pareceu um ângulo, fui tomado de um certo furor e puxei o mais que pude pelo elástico da fisga. Não julgo que, com isto, pudesse fazer mais do que beliscar um gigante. E se não estive à altura de reconhecer o que havia de transtornante e novo e diferentemente belo naquele livro, alegra-me que a desconfiança do meu próprio juízo me tenha dado margem para levantar-me do meu próprio erro, e não refocilar nele como outros fazem com os seus, tornando-se estupidamente orgulhosos, monolíticos nas suas apreciações, tentando salvaguardar futuras inconsistências. E se me contestam por algumas (demasiadas?) vezes ter-me virado àqueles de quem fui em tempos próximo, o que direi é que espero dar-me espaço para me virar tantas mais vezes contra mim mesmo, desesperando quem quer que tenha por projecto deitar conta às contradições em que fui caindo dos muitos lados desta guerra em que me apresentei. E isto até ao dia em que não possa mais desertar, nem haja outros lados, outras estratégias, e nem tenha forças para me mover numa ofensiva de um só e contra todos. Até ao dia... “e só agora penso:/ porque é que nunca olho quando passo defronte de mim mesmo?/ para não ver quão pouca luz tenho dentro?/ ou o soluço atravessado no rosto velho e furioso,/ agora que o penso e vejo mesmo sem espelho?/ – cem anos ou quinhentos ou mil anos devorados pelo fundo e amargo espelho velho:/ e penso que só olhar agora ou não olhar é finalmente o mesmo”... Dito isto, não deixa de me ser também grato ver o Cabrita, num passo, assumir a sua incapacidade para adiantar qualquer coisa sobre aquela obra, tendo tantas vezes tentado, e no passo seguinte, socorrer-se do meu erro para se furtar a um mero exercício paráfrase, ou aos rodeios com que espera camuflar o coxeio da sua “inteligência lacunar”. Aceito, assim, que na incapacidade de dar um só passo fora da sua exígua mortalidade, este bufão escrufuloso, com um tanto de leviano, e outro tanto (que a vida lhe ensinou entretanto) de cálculo, que o leva a admirar titãs numa hora, para na seguinte pôr os seus truques de prestidigitação ao serviço de uns patarocos muito carentes. Se nem lhe falta faro para topar com o ouro nos outros, é triste ver depois como se escacha para ali servindo chá de malvas a uns e umas, a tentar ver se, finalmente, o chamam para director do circo, em vez de ter de agitar no ar o chicote frente a umas esgalgadas feras. De resto, o que ainda tem de melhor são as citações e sentenças que tem arrecadadas na algibeira, e que esbanja a despropósito nas suas doutrinações. Assim, mesmo se é com alguma propriedade que se entristece das coisas que escrevi sobre “A Morte Sem Mestre”, logo vem com o argumento da idade (aquele mesmo a que recorreu Luís Miguel Queirós acusando-me de falta de magnificência). E se “nenhuma vaca é sagrada”, se “a demanda do Graal não autoriza a soberba, que Lancelot faça cruzada contra o rei Artur”, se a Picasso (e a Herberto), no caso de ser encarcerado, se admite que pintem ou escrevam com a própria merda, se a merda nas paredes for a do crítico aí já é imperdoável, mete nojo, porque nem cabe ao crítico sair da linha, dirigir-se a um imortal não com um imenso temor mas num ensaio de violência diante de alguém que, com tantas vidas à sua disposição, não corre o menor risco de ser eclipsado por um juízo precipitado, descabido, e, ainda para mais, tão petulante na arguição, tão “mesquinho”, diz Cabrita, na forma profundamente ingrata de se atirar ao leão. Como disse, o risco nunca se transferiu. Esteve sempre deste lado. O que acontece a alguém que sai aos gritos na direcção de um leão? O curioso é que o atrevimento bastou para que o bardo fosse aos arames, e trocasse as pilhas a algumas das suas luas. Isto sei, e tenho mais do que aquele talão que veio nos “Poemas Canhotos”, e que provavelmente nunca teria chegado aos prelos não tivesse a morte deixado os papéis a saque. Não, Herberto não ficou “contentíssimo”, e nem Cabrita se irá juntar a ele nesse ou noutro contentamento, agora ou mais tarde. Sei que andou pior que estragado, barafustou, convencido que se tinha arranjado uma cabala por conta da decisão de se mandar da Assírio & Alvim, em resultado de umas trapalhadas, tropelias, pelintrices que se hão de saber quando o João Pedro George entregar a biografia (isto contando que não acabem suprimindo as passagens mais inconvenientes)... HH caiu fora da Nau Catrineta a tempo, embora tenha sido só como mudar-se da marquise para a sala de estar, numa altura em que a Assírio era já só a gaveta perfumada da grande Papelaria Nacional. E se ainda não será aqui o lugar nem a hora de se desbobinar tudo, aproveito para contar como aqui há dois anos a viúva do bardo se esgadanhou toda, ali para as bandas de Campo de Ourique, na feira que a Casa do Nando e a Livraria Ler promovem, se pôs num berreiro quando deu com o “Ultimato” exposto numa das barracas, e foi com gritos de “assassino, assassino!”, dizendo que fui eu que lhe matei o marido... Coisa triste de se dizer. A mim, que não lá estava mas me vieram contar, deu-me umas febres de Ahab, mas bastou um trago da própria saliva para recuperar os sentidos, dar um tombo lúcido. Não tenho arpão para tais coisas. Ainda sei medir as distâncias, e se tenho artes e vou tirando o gozo de catar piolhos das barbas do mar, ainda não estou para essas larguezas, simplesmente tenho bem amarrada a noção de que a unanimidade não só é burra, mas paralisante, e bem vejo como estes que me acusam de uma “projecção algo heroica”, tendo exigido a Herberto que cumprisse a “via correcta” são afinal esses mais velhos, ajuizados, infinitamente gratos anciães que pretendem aplicar-me um correctivo (vá, respeitinho, vê se te portas bem que estás a tratar com gente ilustríssima), e me esclarecem sobre o que pode e não pode a crítica, sobre “a humildade de reconhecer os limites” e outras baboseiras dessas que se fazem valer das andas do bom senso, e que não pretendem, afinal, outra coisa do que conter os blasfemos, condenar os hereges, desencorajar os febris, em nome do bem geral nos pacíficos ambientes literários em que vivemos, neutralizando qualquer ameaça, seja do lado da produção seja da recepção, qualquer ensejo de sublevação ou destruição, terrorismo, e isto face ao podre reino que todos reconhecem mas tão poucos parecem dispostos a deixar que seja reduzido a cinzas. Daí este acto solitário em que persisto, e que pode não ser magnífico nem magnificente, pode ser mal-educado, às vezes mesquinho ou gratuito, conflituoso, e algumas vezes também excessivo, injusto, estúpido ou ridículo... Antes isso. O risco estará sempre mais deste lado.

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