segunda-feira, julho 16, 2018


para o João

Digamos que amanhece, que acordas desses teus pesadelos cheios de talento e ao redor da cama dás com um bando de pássaros mortos (tão mortos, tão imóveis, tão caídos...). Os gatos também encolhem os ombros. A casa é um eco que não acaba. Surda, tem uma memória espantosa, mas já nada de novo recebe. Erguendo-se no meio do tempo sobre uma raiz secreta, balança-se, tricotando os dias. Tem as ranhuras do sol no pátio e, por toda a parte, ligando as divisões, fios de aranha e baba cristalina, o reflexo de sempre na bacia entupida, as flechas da infância e pedras tão fundas. Um relógio caído a um canto, devorado por formigas, e as horas fugidas, desmesuradas. Esse deserto de porcelana, flores imóveis, tudo petrificado num espelho morto que dessangra reflexos antigos. Uma nuvem cobre os espaços a que a dor se habituou. Lá fora, o vento já depôs as armas. Resta a chuva, o seu coruscar. O silêncio bebe-a. Um sol frio bebe leite nos escombros da velha casa. Com os dedos lês os detalhes de que a luz cuidou, o gesto sombrio da sua glória consumida. Outra flecha perdida entre a tua fragilidade e o ruído de uma máquina de coser no quarto, trancado há tanto tempo. Digamos que anoitece e no escuro a tua lâmpada canta só, põe ordem ao enredo e o seu círculo alarga, sussurrante, embriagando os mosquitos. A máquina em que te bates, como uma prece depois de perdida a fé, soa bem alto pela noite fora. Face à hesitante ruína da casa, quase a cair para dentro, e ouvindo o grito das pedras, lanças-lhe um urro que devolve o orgulho e a pose à sua arquitectura.

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