terça-feira, julho 17, 2018


Miúdo, trazia as piores notas, mas eu tinha a paciência própria de um mentecapto, agachado no quintal o dia inteiro, o olho na fechadura de uma porta solta, sem incomodar ninguém, horas a espiar galáxias: a minha era uma solidão cósmica. Nos dias mais terra-a-terra era eu e o cão escavando buracos em busca dos nossos iguais. Então as palavras eram o modo de atiçar, fazer crescer as coisas, dar-lhes corda. A beleza ainda vinha longe; só passaria naqueles lugares anos mais tarde. Foi a professora substituta que tirou o bigode às aulas de alemão e levou os meus primeiros ensaios com a paisagem.  Até ali, para que serviam as flores, os livros, tantos nomes inquietantes na sua inflamação sonora, e mesmo a porta do quarto antes sempre escancarada? A janela era só a moldura para a árvore que, no largo, vez por outra prendia uma nuvem. O rádio vigiava do parapeito, e a rua aumentava o volume quando ela subia, a música aos pés dela. Eu ia vê-la, esperava, tirava o resto da tarde para estudar como expor-lhe o meu caso, que desordem eu tinha visto a partir dela nas coisas do mundo. Meses passeando à beira de água, sentindo-me olhado. Na última semana dela tirei o meu primeiro bom+, depois a outra voltou da licença e as notas desabaram. O alemão ficou de novo um som de fundo impondo e ditando o fim do mundo. Nem sabia já fazer-me companhia. Arrancava o escuro, despetalando-o quieto junto da aranha e da sua constelação de morte. Ela lembrava-me um cego de roupão ao piano, deliciada com o som das articulações de cada insecto. Um rio todo penumbra cortou ao meio a casa, o silêncio ficou sonâmbulo, batendo os cantos. No quintal, os pássaros desciam sobre as costelas da tarde e a respiração tornou-se pesada. As distâncias chamavam-se e tudo o que ficava no meio se abatia. Ruídos puseram-se olhando para trás esse eco balançando-se de garras crispadas no poleiro da memória. Como a dor aprendeu o caminho voltava agora quando queria, a adolescência lembrava mais um estado de decomposição: tiveste um corpo porque outro to disse, e depois do corpo só restavam os nomes, as palavras que perdiam o sentido entre eles.

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