O ANALFABETO SECUNDÁRIO
Dantes, num tempo ainda
recente, a televisão foi o meio ideal do analfabeto secundário – essa figura conceptualmente
identificada e caracterizada pelo poeta e ensaísta Hans Magnus Enzensberger,
num discurso de 1985, intitulado “Elogio do Analfabetismo”. O objecto do elogio
de Enzensberger foi o “analfabetismo primário”, que é a origem de toda a
literatura, na medida em que desenvolveu os recursos da transmissão oral. Neste
sentido, a literatura é precisamente uma arte de analfabetos. Mas, a partir da
época da industrialização e, com grande pujança, desde que triunfou a regra da
massificação, surgiu na cena social a figura a que Enzensberger dá o nome de
“analfabeto secundário”, que não descende da linhagem do primeiro. Este novo
tipo de analfabetismo não desenvolve nenhuma arte nem tem potencialidades
antropológicas: o analfabeto secundário desconhece-se a si mesmo enquanto tal e
considera-se informado. Sabe muito bem decifrar os códigos escritos e as
linguagens visuais com que o mundo moderno o interpela. Não sabe é que há muito
mais mundo para além daquele que foi configurado à sua medida. E quando, por
acaso ou acidente, se vê confrontado com o que não conhece reage como um
filisteu, para o qual só existe a categoria da utilidade e o universo objectivo
e enumerável dos bens. Ao serviço do analfabeto secundário está hoje uma grande
parte do mundo impresso. Por isso, o destino mais comum das livrarias foi o de
se renderem também aos bons ofícios dessa figura universal. Nelas, resplandece hoje
este analfabetismo, que alimenta uma grossa fatia da indústria do livro. Quem
frequenta estes templos profanos da cultura já deve ter percebido que os livros,
em Portugal, cresceram escandalosamente, ganharam um volume demagógico e
abandonaram, a eito, a regra da sobriedade. Assim, qualquer novela consegue
parecer um tijolo com a feição sólida de Guerra
e Paz: grandes lombadas, dimensões imponentes, papel grosso, caracteres na
página bem ampliados (em Espanha, a tendência é igual, mas está ainda aquém de
nós). Quase toda a edição, mesmo a literatura mais erudita, arranja maneira de
piscar o olho ao analfabeto secundário. Recordemos que em 1935, com os Penguin
Books, surgiu o livro de bolso, um produto que revolucionou a indústria
editorial, mas não esteve isento de polémica. Um famoso texto de 1964 contra a
“culture de poche”, de Hubert Damisch, mostra bem como este tipo de livro foi
visto como algo exterior à nobreza da edição. E o próprio Enzensberger, no
final dos anos 60 do século passado, dedicou a ele um capítulo do seu ensaio
sobre a “indústria da consciência”. Hoje, ninguém pode negar-lhe as virtudes e
o efeito que teve sobretudo na divulgação dos clássicos. Em Portugal, o livro
de bolso nunca se conseguiu impor e o caminho tem sido o inverso: quanto mais
aspiram a uma larga difusão, maiores são os livros. Porquê? Porque as livrarias
são campos de batalha onde se combate por espaço e visibilidade (daí que os
livros pareçam tanques de uma guerra carnavalesca, muito colorida) e porque o
analfabeto secundário só se detém naquilo que é suficientemente tagarela e
conspícuo. Não lhe bastam as virtudes do livro que abriga nas suas páginas uma
palavra adormecida que o leitor vai – ou não – despertar. É preciso ter a
sensação de que está a comprar uma “coisa” imediatamente mensurável e que se oferece
a uma apreensão pelos sentidos, pois, para ele, a mercadoria é o último nome do
Bem. Estes tijolos servem para alimentar as fontes morais do valor, em que o Bem
coincide sempre com a matéria e tem residência fixa nas “coisas”.
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