Se calhar devo começar por
falar daquilo que não vou falar: e não vou falar de coisas como horror, terror
ou violência na linguagem do Rui Nunes, nem de coisas como o significado ou
sociologia do mundo romanesco (as expressões do costume) de Rui Nunes, nem da
maior ou menor evidência de modos oblíquos de falar sobre política,
sexualidade, patriotismo ou anti-patriotismo na sua obra, muito menos em
semióticas do avesso ou em sintaxes desfeitas, colapsadas ou despedaçadas, ou
em figuras estilísticas mais ou menos rebuscadas. Quero antes contar aquilo que
automaticamente me conquista na escrita do Rui Nunes, aquilo que me poderá dar
o cartão de admissão vitalício para o clube de leitores do autor chamado Rui
Nunes. Poderia acrescentar aqui a expressão: «o meu Rui Nunes». E este autor
mostra uma particularidade que é a única que me interessa para tudo quanto leio
e quanto escrevo. Essa particularidade é, a meu ver, uma certa resistência
perante a hipótese de contar histórias. Nem digo hipótese, porque quando não se
consegue contar uma história, não é uma questão de rejeitar uma opção e
escolher outra. É um caso particular de cegueira. E é essa cegueira que me
interessa, e que está relacionada com outro termo que também é muito da minha
afeição, e que é o de convicção. Devo dizer aqui o que entendo por contar
histórias. Acho que existem dois tipos de pessoas: umas que não têm problemas
nenhuns em tornar as suas vidas, o seu quotidiano, numa espécie de narrativa
contínua. Estas pessoas geralmente não encontram momentos decisivos de quebra
entre o que foi o seu passado e o que é o seu presente. Existe, digamos assim,
uma lógica de continuidade entre as duas coisas. O passado serve para estas
pessoas enquanto ilustração ou exemplo para aquilo que elas são agora. O
presente destas pessoas é assim o culminar de uma experiência contínua, com
momentos que valeram, cada um, como meio para chegar a um fim. Depois há o
outro género de pessoa, e no qual também eu me identifico. Há uma resistência
em contar histórias, uma resistência em não dizer tudo, em não atribuir
continuidade à qualidade da memória ou do processo rememorativo. O passado não
é trazido intacto para o presente: ele serve, quando muito, de enquadramento
mental, enquanto tom muito particular pelo qual afinamos uma experiência do
agora. Muitas vezes me pedem para contar as experiências do meu passado, por
exemplo, quando o que está em causa são viagens a outros países. Sou um péssimo
guia, um péssimo auxílio para o futuro viajante. Não guardo nomes de sítios, de
caminhos, de pessoas, não guardo para mim os tracejados feitos nos mapas. Sou
capaz de dizer ao futuro viajante as coisas mais desinteressantes: é assim, é
assado, vai ver, vale a pena. Mas digo estas coisas por cortesia. Não me
apetece descrever, contar. Há qualquer coisa que fica na memória que entretanto
já não é memória mas outra coisa que nos constitui no presente. O
Hemingway dizia em The Sun Also Rises:
“You’ll lose it if you talk about it.” Acho que isto é puramente verdade. Hoje em dia fala-se de mais,
não se guarda devidamente o segredo confuso que há numa memória. Há pessoas
que, como eu, têm graves problemas em contar histórias. O problema não é
propriamente um de organização mental da experiência. É mais uma birra, um
finca-pé, uma resistência em não dizer, em não acrescentar mais uma palavra
sequer ao significado da experiência, ao reconhecimento da experiência em nós
mesmos. O que é o mesmo que dizer, como Hemingway sugere, que às vezes
estragamos as coisas com descrições, retratos aproximados da realidade que
muitas das vezes só criam fastio. Parte do que se vai lendo hoje em dia dos
prosadores portugueses é prova viva disso. Ora, para o género de pessoas que
não se inclina muito a contar histórias desta maneira, surge o que me parece
ser uma tendência episódica. Isto significa ver pedaços da vida como episódios
que podem ser riscados e redescritos as vezes que forem necessárias para lhes
dar o aspecto vital da criação. É este aspecto episódico da experiência que
mais me atrai na linguagem do Rui Nunes. Porque eu me encontro nas experiências
descritas nos seus livros, não por ter estado lá, mas por as encontrar ainda
muito vivas, para mim. Isto porque o
que me é dado a ver com a maior nitidez possível onde começa e termina a
fulgurância do gesto criativo que baralha a memória, no caso de Rui Nunes, com
megalomanias e branduras de criança capazes de nos trazer o caos de bandeja. E
isto acontece porque o efeito de rememoração que existe nos seus livros nada
tem que ver com o contar uma história no sentido trivial. O efeito de
rememoração vai ao encontro da mais pura experiência de criar, de redescrever,
de um homem se reinventar a si mesmo, vai ao encontro do reconhecimento desta
necessidade e que faz de nós humanos. Sartre dizia que o caso infalível de nos
darmos a reconhecer ao Outro, e ao mesmo tempo de nos reconhecermos a nós
mesmos, é o da vergonha. O sentimento da vergonha, isto é, de nos sentirmos
observados. Esta observação pode ser acompanhada de muita roupa, de muita
maquilhagem, que, está claro, serve para atenuar os efeitos da vergonha na
aproximação ao Outro e no permitirmo-nos ser reconhecidos. Este reconhecimento
pode ser, e é na maior parte dos casos, assustador. E a escrita do Rui Nunes é
só coragem, é só nudez, é o contrário de toda a maquilhagem com que o mundo nos
confronta todos os dias. A queda do estado de graça das palavras, do incessante
palavreado sobre tudo e nada, é também a nudez de um corpo apontada para a
nudez possível de um outro corpo. Li a entrevista que o Diogo Vaz Pinto fez há
uns tempos ao Rui Nunes, e impressionaram-me as suas respostas como me
impressionam os seus livros. Impressionam-me porque me encontro inteiro nas
suas palavras quando o Rui fala da incapacidade de as pessoas lidarem com o
silêncio. E é o silêncio o que mais ouço nos seus livros. Transpor o silêncio
para as palavras, para muitos livros, não é de todo fácil de fazer. Porque o
encontro com o silêncio não é um encontro com deus, mas com a nossa coragem. E
isso é para muita gente um lugar inabitável. E é por isso que diariamente nos
forçam a falar. «Fala, diz alguma coisa, não estejas para aí calado», como
dizem as pessoas e como o Rui Nunes dizia na tal entrevista. E é o que me dizem
quando me pedem para contar alguma coisa, para não estar quieto, porque assim
não me tiram as medidas, não me percebem. Mas eu gosto de perceber as pessoas
pelas pontas, pelos pormenores de gestos, de tons de voz, pela métrica
particular dos silêncios. É nessa comunicação subterrânea que eu me encontro,
ao outro e a mim. Parece-me também que está aqui toda a humildade possível do
homem, que é também uma manifestação de um enorme orgulho. Este orgulho é
benigno. No prólogo do Tratado Lógico-Filosófico, Wittgenstein escreve
assim: “Este livro será talvez apenas compreendido por alguém que tenha uma vez
ele próprio já pensado os pensamentos que são nele expressos – ou pelo menos
pensamentos semelhantes. Não é, pois, um livro de texto. O seu fim seria
alcançado se desse prazer a quem o lesse compreendendo.” Esta citação de
Wittgenstein e o uso da linguagem pelo Rui Nunes cruzam-se no mesmo ponto
essencial. Quando se fala nesta exclusividade de Wittgenstein ou da escrita de
Rui Nunes, não é de sobranceria ou de orgulho inconsequente na forma em que a
escrita se impõe como lugar estranho. Ambos dizem-me a mesma coisa: que ler, o
ler a sério, e o ler-se a si mesmo, como dizia Proust, não é um passatempo,
também não é uma lição de vida: é sim, como toda a filosofia a sério, um
começar a pensar. E esse começar a pensar nunca se dá enquanto começo, mas
sempre a meio do caminho. É necessário um esforço para encontrar o autor,
tentar perceber o que ele está a fazer, não as histórias que ele tem para nos
contar, mas a forma que achou para nos contar. Essa forma pode ocupar uma vida
inteira e é a melhor assinatura para um corpo humano que nasce e morre. Em
silêncio, no silêncio que só dele vem, e cuja crueza deve ser exposta ao Outro
e vice-versa.
Quando começo a ler os livros
do Rui Nunes, e principalmente os seus últimos, A Mão do Oleiro, Barro, Armadilha e Uma Viagem no Outono, encontro-me, não no começo de uma prática a
que se chama leitura, mas no meio de uma conversa muito íntima. Sou arrastado
para a sua escrita como uma criança é arrastada para a doença de uma árvore que
já viu milhares de vezes no seu quintal, mas que, antes das suas brincadeiras,
não deixa de ir espreitar a progressão de cada tumor, de cada aspereza ou
viscosidade nessa doença. É uma estranheza particular que me faz lá voltar.
Porque é que o autor escreve assim, o que está por trás desta dor, desta violência?
Mas nada disto terá que ver com impulsos antropológicos ou filológicos. O que
eu quero saber, e o que eu encontro nos livros do Rui Nunes, é: quem é que está
ali a acenar-me, a contar-me da sua dor, quando eu ainda não lhe dei nada em
troca? Pergunto-me na leitura: o que me faz merecer o destaque da minha atenção
no silêncio que as suas palavras tocam deste modo tão delicado. Claro que há um
mundo ficcional que me toca particularmente. A frieza de certos objectos, o
vai-e-vem das personagens-fantasma que chegam com todo o calor na mão do poeta
e que depois se desfazem como pó, porque é essa a função delas. Precisamente
porque estamos a falar de episódios de redescrição, não de narrativas que
perdem o fôlego para chegar a uma zona de conforto. A estranheza que me atrai
nos livros do Rui Nunes está sobretudo relacionada com a própria estranheza que
o autor mostra perante os episódios da sua vida, tornando o seu passado
estranho através da autocriação. Rui Nunes olha com uma abertura física e
sensorial fora do comum para as suas diferentes identidades do passado (e que
nem precisam de se referir a si mesmo, podem-se referir a qualquer um dos seus
lugares de afecto). É nessa estranheza
perante os episódios de uma vida que eu encontro o autor, e por consequência
onde eu me encontro também. Nada vinca mais o efeito de estranheza do que um olhar
atento sobre a humildade com que um corpo se vai deixando morrer. A estranheza
não deixa só o autor ou o leitor perplexos perante o outrora familiar e agora
desfigurado: é antes um impulso sem par para a criação, para pôr o passado à
roda como se calhar o passado nunca antes rodou.
Como o Rui Nunes escreve no
livro Barro, há, claro «a indiferença
de todos os lugares»: não se trata do efeito cómodo e que já enganou muitos
comentadores de Proust acerca da presentificação do passado através das suas
manifestações fortuitas no presente. Há, isso sim, uma voz que tudo atravessa,
o tempo, os episódios, e o corpo que se vai perdendo neles. Mas cada uma destas
perdas significa a construção do poeta, significa a afinação cada vez mais
medonha e ao mesmo tempo mais acertada da sua voz. É na vitalidade da voz de
Rui Nunes que eu me encontro, e claro, no conforto de alguns lugares-imagem que
são, para mim, lugares de descanso antes do desastre que toda a escrita que
vale a pena tem de provar ser. Estes lugares de descanso são para mim palavras,
e estas palavras, que não arrastam as coisas em concreto para o texto, mas que
funcionam como caridades momentâneas na momento da interpretação, são palavras
ou expressões como: “quintal”, “vespas secas”, o “vidro moído nos passos”, “a
paciência da fome” (A Mão do Oleiro)
““uma criança mede o futuro/com a imprecisão dos pequenos gestos/descobre a minúcia
assassina de um movimento” (Armadilha), “os óculos a escorregarem pelo nariz” (Barro), a “estranheza de um bicho amedrontado”,
uma “casa que desabriga”, (Barro), ou
passos como “O que me torna estranhos os países é o conhecimento que tenho
deles. Quanto mais tempo fico, mais estrangeiro sou [.]” (Barro), e “[…] exposto o corpo que sempre foi um arremedo, sentada
na borda da cama, a balouçar os pés, num movimento que os esfria, e assim
começo o dia, com o vagar dos sonâmbulos e dos lázaros, às vezes pergunto-me:
quem posso lembrar? [.]” (A Boca na Cinza).
Mas este exercício de citação é trivial e preguiçoso, e para mim é uma nota
enfadonha de rodapé que não chego a ler quando penso nas horas, de corpo contra
corpo, que passei a ler os livros do Rui Nunes. Lembro-me de que quando tinha
uns sete, oito anos, costumava jogar à bola muitas vezes sozinho no quintal dos
meus avós, e que me entretinha, não só a dar os pontapés na bola, mas a
relatar, do princípio ao fim, o meu próprio jogo, como se se tratasse de uma
grande final europeia transmitida no rádio. Quando volto a pensar nestas e noutras
brincadeiras do género, em que o meu pai arranjava motivo de inquietação
ligeira e o meu avô um motivo para se pôr a pensar em esquizofrenias, sei que a
leitura dos livros do Rui Nunes é uma das formas sofisticadas que arranjei para
continuar os meus jogos de futebol solitários com relato. O que quero dizer com
isto é que a necessidade de estar sozinho não é sinónimo de tristeza ou de
alheamento do mundo: antes é uma aproximação ao mundo pelas minhas próprias
mãos. A obra de Rui Nunes é, para mim, o espelhamento desse gesto de liberdade,
desse cruzamento privilegiado com o silêncio.
1 comentário:
Ai, o rui nunes, esse caso de paixão na minha vida. Sem ele não seria tão o que sou.
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