domingo, maio 04, 2014

RUI NUNES


Texto de Frederico Pedreira, lido ontem durante a sessão "Participar no Mundo", com a presença de Rui Nunes, António Guerreiro, Jorge Roque e Frederico Pedreira



Se calhar devo começar por falar daquilo que não vou falar: e não vou falar de coisas como horror, terror ou violência na linguagem do Rui Nunes, nem de coisas como o significado ou sociologia do mundo romanesco (as expressões do costume) de Rui Nunes, nem da maior ou menor evidência de modos oblíquos de falar sobre política, sexualidade, patriotismo ou anti-patriotismo na sua obra, muito menos em semióticas do avesso ou em sintaxes desfeitas, colapsadas ou despedaçadas, ou em figuras estilísticas mais ou menos rebuscadas. Quero antes contar aquilo que automaticamente me conquista na escrita do Rui Nunes, aquilo que me poderá dar o cartão de admissão vitalício para o clube de leitores do autor chamado Rui Nunes. Poderia acrescentar aqui a expressão: «o meu Rui Nunes». E este autor mostra uma particularidade que é a única que me interessa para tudo quanto leio e quanto escrevo. Essa particularidade é, a meu ver, uma certa resistência perante a hipótese de contar histórias. Nem digo hipótese, porque quando não se consegue contar uma história, não é uma questão de rejeitar uma opção e escolher outra. É um caso particular de cegueira. E é essa cegueira que me interessa, e que está relacionada com outro termo que também é muito da minha afeição, e que é o de convicção. Devo dizer aqui o que entendo por contar histórias. Acho que existem dois tipos de pessoas: umas que não têm problemas nenhuns em tornar as suas vidas, o seu quotidiano, numa espécie de narrativa contínua. Estas pessoas geralmente não encontram momentos decisivos de quebra entre o que foi o seu passado e o que é o seu presente. Existe, digamos assim, uma lógica de continuidade entre as duas coisas. O passado serve para estas pessoas enquanto ilustração ou exemplo para aquilo que elas são agora. O presente destas pessoas é assim o culminar de uma experiência contínua, com momentos que valeram, cada um, como meio para chegar a um fim. Depois há o outro género de pessoa, e no qual também eu me identifico. Há uma resistência em contar histórias, uma resistência em não dizer tudo, em não atribuir continuidade à qualidade da memória ou do processo rememorativo. O passado não é trazido intacto para o presente: ele serve, quando muito, de enquadramento mental, enquanto tom muito particular pelo qual afinamos uma experiência do agora. Muitas vezes me pedem para contar as experiências do meu passado, por exemplo, quando o que está em causa são viagens a outros países. Sou um péssimo guia, um péssimo auxílio para o futuro viajante. Não guardo nomes de sítios, de caminhos, de pessoas, não guardo para mim os tracejados feitos nos mapas. Sou capaz de dizer ao futuro viajante as coisas mais desinteressantes: é assim, é assado, vai ver, vale a pena. Mas digo estas coisas por cortesia. Não me apetece descrever, contar. Há qualquer coisa que fica na memória que entretanto já não é memória mas outra coisa que nos constitui no presente. O Hemingway dizia em The Sun Also Rises: “You’ll lose it if you talk about it.” Acho que isto é puramente verdade. Hoje em dia fala-se de mais, não se guarda devidamente o segredo confuso que há numa memória. Há pessoas que, como eu, têm graves problemas em contar histórias. O problema não é propriamente um de organização mental da experiência. É mais uma birra, um finca-pé, uma resistência em não dizer, em não acrescentar mais uma palavra sequer ao significado da experiência, ao reconhecimento da experiência em nós mesmos. O que é o mesmo que dizer, como Hemingway sugere, que às vezes estragamos as coisas com descrições, retratos aproximados da realidade que muitas das vezes só criam fastio. Parte do que se vai lendo hoje em dia dos prosadores portugueses é prova viva disso. Ora, para o género de pessoas que não se inclina muito a contar histórias desta maneira, surge o que me parece ser uma tendência episódica. Isto significa ver pedaços da vida como episódios que podem ser riscados e redescritos as vezes que forem necessárias para lhes dar o aspecto vital da criação. É este aspecto episódico da experiência que mais me atrai na linguagem do Rui Nunes. Porque eu me encontro nas experiências descritas nos seus livros, não por ter estado lá, mas por as encontrar ainda muito vivas, para mim. Isto porque o que me é dado a ver com a maior nitidez possível onde começa e termina a fulgurância do gesto criativo que baralha a memória, no caso de Rui Nunes, com megalomanias e branduras de criança capazes de nos trazer o caos de bandeja. E isto acontece porque o efeito de rememoração que existe nos seus livros nada tem que ver com o contar uma história no sentido trivial. O efeito de rememoração vai ao encontro da mais pura experiência de criar, de redescrever, de um homem se reinventar a si mesmo, vai ao encontro do reconhecimento desta necessidade e que faz de nós humanos. Sartre dizia que o caso infalível de nos darmos a reconhecer ao Outro, e ao mesmo tempo de nos reconhecermos a nós mesmos, é o da vergonha. O sentimento da vergonha, isto é, de nos sentirmos observados. Esta observação pode ser acompanhada de muita roupa, de muita maquilhagem, que, está claro, serve para atenuar os efeitos da vergonha na aproximação ao Outro e no permitirmo-nos ser reconhecidos. Este reconhecimento pode ser, e é na maior parte dos casos, assustador. E a escrita do Rui Nunes é só coragem, é só nudez, é o contrário de toda a maquilhagem com que o mundo nos confronta todos os dias. A queda do estado de graça das palavras, do incessante palavreado sobre tudo e nada, é também a nudez de um corpo apontada para a nudez possível de um outro corpo. Li a entrevista que o Diogo Vaz Pinto fez há uns tempos ao Rui Nunes, e impressionaram-me as suas respostas como me impressionam os seus livros. Impressionam-me porque me encontro inteiro nas suas palavras quando o Rui fala da incapacidade de as pessoas lidarem com o silêncio. E é o silêncio o que mais ouço nos seus livros. Transpor o silêncio para as palavras, para muitos livros, não é de todo fácil de fazer. Porque o encontro com o silêncio não é um encontro com deus, mas com a nossa coragem. E isso é para muita gente um lugar inabitável. E é por isso que diariamente nos forçam a falar. «Fala, diz alguma coisa, não estejas para aí calado», como dizem as pessoas e como o Rui Nunes dizia na tal entrevista. E é o que me dizem quando me pedem para contar alguma coisa, para não estar quieto, porque assim não me tiram as medidas, não me percebem. Mas eu gosto de perceber as pessoas pelas pontas, pelos pormenores de gestos, de tons de voz, pela métrica particular dos silêncios. É nessa comunicação subterrânea que eu me encontro, ao outro e a mim. Parece-me também que está aqui toda a humildade possível do homem, que é também uma manifestação de um enorme orgulho. Este orgulho é benigno. No prólogo do Tratado Lógico-Filosófico, Wittgenstein escreve assim: “Este livro será talvez apenas compreendido por alguém que tenha uma vez ele próprio já pensado os pensamentos que são nele expressos – ou pelo menos pensamentos semelhantes. Não é, pois, um livro de texto. O seu fim seria alcançado se desse prazer a quem o lesse compreendendo.” Esta citação de Wittgenstein e o uso da linguagem pelo Rui Nunes cruzam-se no mesmo ponto essencial. Quando se fala nesta exclusividade de Wittgenstein ou da escrita de Rui Nunes, não é de sobranceria ou de orgulho inconsequente na forma em que a escrita se impõe como lugar estranho. Ambos dizem-me a mesma coisa: que ler, o ler a sério, e o ler-se a si mesmo, como dizia Proust, não é um passatempo, também não é uma lição de vida: é sim, como toda a filosofia a sério, um começar a pensar. E esse começar a pensar nunca se dá enquanto começo, mas sempre a meio do caminho. É necessário um esforço para encontrar o autor, tentar perceber o que ele está a fazer, não as histórias que ele tem para nos contar, mas a forma que achou para nos contar. Essa forma pode ocupar uma vida inteira e é a melhor assinatura para um corpo humano que nasce e morre. Em silêncio, no silêncio que só dele vem, e cuja crueza deve ser exposta ao Outro e vice-versa.
Quando começo a ler os livros do Rui Nunes, e principalmente os seus últimos, A Mão do Oleiro, Barro, Armadilha e Uma Viagem no Outono, encontro-me, não no começo de uma prática a que se chama leitura, mas no meio de uma conversa muito íntima. Sou arrastado para a sua escrita como uma criança é arrastada para a doença de uma árvore que já viu milhares de vezes no seu quintal, mas que, antes das suas brincadeiras, não deixa de ir espreitar a progressão de cada tumor, de cada aspereza ou viscosidade nessa doença. É uma estranheza particular que me faz lá voltar. Porque é que o autor escreve assim, o que está por trás desta dor, desta violência? Mas nada disto terá que ver com impulsos antropológicos ou filológicos. O que eu quero saber, e o que eu encontro nos livros do Rui Nunes, é: quem é que está ali a acenar-me, a contar-me da sua dor, quando eu ainda não lhe dei nada em troca? Pergunto-me na leitura: o que me faz merecer o destaque da minha atenção no silêncio que as suas palavras tocam deste modo tão delicado. Claro que há um mundo ficcional que me toca particularmente. A frieza de certos objectos, o vai-e-vem das personagens-fantasma que chegam com todo o calor na mão do poeta e que depois se desfazem como pó, porque é essa a função delas. Precisamente porque estamos a falar de episódios de redescrição, não de narrativas que perdem o fôlego para chegar a uma zona de conforto. A estranheza que me atrai nos livros do Rui Nunes está sobretudo relacionada com a própria estranheza que o autor mostra perante os episódios da sua vida, tornando o seu passado estranho através da autocriação. Rui Nunes olha com uma abertura física e sensorial fora do comum para as suas diferentes identidades do passado (e que nem precisam de se referir a si mesmo, podem-se referir a qualquer um dos seus lugares de afecto).  É nessa estranheza perante os episódios de uma vida que eu encontro o autor, e por consequência onde eu me encontro também. Nada vinca mais o efeito de estranheza do que um olhar atento sobre a humildade com que um corpo se vai deixando morrer. A estranheza não deixa só o autor ou o leitor perplexos perante o outrora familiar e agora desfigurado: é antes um impulso sem par para a criação, para pôr o passado à roda como se calhar o passado nunca antes rodou.
Como o Rui Nunes escreve no livro Barro, há, claro «a indiferença de todos os lugares»: não se trata do efeito cómodo e que já enganou muitos comentadores de Proust acerca da presentificação do passado através das suas manifestações fortuitas no presente. Há, isso sim, uma voz que tudo atravessa, o tempo, os episódios, e o corpo que se vai perdendo neles. Mas cada uma destas perdas significa a construção do poeta, significa a afinação cada vez mais medonha e ao mesmo tempo mais acertada da sua voz. É na vitalidade da voz de Rui Nunes que eu me encontro, e claro, no conforto de alguns lugares-imagem que são, para mim, lugares de descanso antes do desastre que toda a escrita que vale a pena tem de provar ser. Estes lugares de descanso são para mim palavras, e estas palavras, que não arrastam as coisas em concreto para o texto, mas que funcionam como caridades momentâneas na momento da interpretação, são palavras ou expressões como: “quintal”, “vespas secas”, o “vidro moído nos passos”, “a paciência da fome” (A Mão do Oleiro) ““uma criança mede o futuro/com a imprecisão dos pequenos gestos/descobre a minúcia assassina de um movimento” (Armadilha), “os óculos a escorregarem pelo nariz” (Barro), a “estranheza de um bicho amedrontado”, uma “casa que desabriga”, (Barro), ou passos como “O que me torna estranhos os países é o conhecimento que tenho deles. Quanto mais tempo fico, mais estrangeiro sou [.]” (Barro), e “[…] exposto o corpo que sempre foi um arremedo, sentada na borda da cama, a balouçar os pés, num movimento que os esfria, e assim começo o dia, com o vagar dos sonâmbulos e dos lázaros, às vezes pergunto-me: quem posso lembrar? [.]” (A Boca na Cinza). Mas este exercício de citação é trivial e preguiçoso, e para mim é uma nota enfadonha de rodapé que não chego a ler quando penso nas horas, de corpo contra corpo, que passei a ler os livros do Rui Nunes. Lembro-me de que quando tinha uns sete, oito anos, costumava jogar à bola muitas vezes sozinho no quintal dos meus avós, e que me entretinha, não só a dar os pontapés na bola, mas a relatar, do princípio ao fim, o meu próprio jogo, como se se tratasse de uma grande final europeia transmitida no rádio. Quando volto a pensar nestas e noutras brincadeiras do género, em que o meu pai arranjava motivo de inquietação ligeira e o meu avô um motivo para se pôr a pensar em esquizofrenias, sei que a leitura dos livros do Rui Nunes é uma das formas sofisticadas que arranjei para continuar os meus jogos de futebol solitários com relato. O que quero dizer com isto é que a necessidade de estar sozinho não é sinónimo de tristeza ou de alheamento do mundo: antes é uma aproximação ao mundo pelas minhas próprias mãos. A obra de Rui Nunes é, para mim, o espelhamento desse gesto de liberdade, desse cruzamento privilegiado com o silêncio.


1 comentário:

marta disse...

Ai, o rui nunes, esse caso de paixão na minha vida. Sem ele não seria tão o que sou.