segunda-feira, maio 05, 2014

RUI CAEIRO / O amor como instrumento da mais banal e vital das lições

Fotografia de Rodrigo Cabrita

O cerco que a memória nos faz, marcas fundas que ficam de despedidas mais ou menos inevitáveis e que nos tornam animais assombrados, é por aí que vai Rui Caeiro quando chega a hora de deitar contas aos afectos.

Texto sobre «Acabamentos de primeira» (Edições Eclusa)

Se a vida se rendesse a uma simples conta de somar, aquilo que de facto nos acontece cairia para uma nota de rodapé face ao que a partir disso emerge como experiência sentimental. Acabam por ser esses os verdadeiros caminhos por onde segue um corpo a raspar da pele os sinais que não estavam lá à nascença. "Uma história chega ao fim e logo retoma o seu curso, o seu ritmo obsessivo - dentro da minha cabeça ou navegando, perdida, pelo vasto território que é o resto do corpo." Um território de últimas palavras que persistem como ecos, a essa recontagem se dispõe este relato de Rui Caeiro. "E a dor? [...) A dor está sempre lá." Sem abater memórias, estender-lhes as peles como troféus, o autor fala de uma memória como um gesto que abarca tudo para melhor esquecer, seguindo para diante de si mas sem se apagar. Histórias de fim, de quando "deixa de haver história", essa "árida paisagem" que se atravessa como um percurso "doloroso, clandestino, sinuoso, fantasmático".
Como acontece com os amputados, Caeiro assemelha esta consciência à sensação da perna ou do braço que se perdeu. O assunto é o mais vulgar, o de sempre, aquele de que não se foge nunca muito, para o mal e para o bem. Amores, envolvimentos afectivos, ou, como um amigo do autor preferirá, "ensarilhamento de cornos". Se o céu nos escapa, o inferno é a obra de uma vida. Dirigido e interpretado por nós, o que fica e dói no avesso da pele. Esta nova plaquete, de um autor que construiu uma obra provavelmente sem o querer ou pensar muito nisso, mas que o fez minuciosamente, chega como uma nova adenda, quase um percalço, quase um resumo, mas nunca um troféu. Caeiro fala no "inferno de mim", "soma dos meus fracassos". Há aqui a condenação e o remorso que perfuma todos os finais, por mais que o tempo passe. A lembrança é servida fria, e às vezes fica-se por pouco mais que "dois corpos lado a lado" volvidas algumas décadas. Contra a luz do tempo que passou, essas sombras crescem para uma certa mágoa, uma infância que volta para reaver as suas perdas, os episódios que primeiro iludem e depois nos dão a certeza da morte. Pode parecer duro, triste também, mas no registo teimosamente lapidar de Rui Caeiro acha-se uma inquietação de tal modo comovente que aquilo que nos torna vulgares e nos assemelha se mostra precisamente aquilo que nos traz mais conforto. Como na canção dos Beatles, "love is old, love is new", ou como na de Cohen, "yes, many loved before us, I know that we are not new", também em "Acabamentos de Primeira" nos tornamos conscientes do quanto a experiência que mais nos humaniza é vulgar, sem nunca ser patética. E o sofrimento educado e sóbrio ou uma alegria que se refinou e soube envelhecer compõe muitas vezes as notas mais fortes de uma melodia pessoal, desse embalo que permite que falemos da vida contando episódios, lendas insignificantes, sendo personagens enternecidas à beira de intrigas sem grande conflito senão o desejo que não morre apesar do tempo. "Alguns há para quem as despedidas podem ser ao mesmo tempo banais, sem história e difíceis ainda assim", anota Rui Caeiro perdidamente num parágrafo. Como os campos que rodeiam a Vila Viçosa da infância do autor, o estilo sagaz e justo que lhe caracteriza a prosa é muito adequado a "encontros, deleites, rompimentos, tudo de primeira qualidade". Nada aqui é especialmente elevado ou transcendente, mas a magia instala-se num certo comedimento, a de uma mão que sabe dosear severidade e essa doçura como "um veneno que a memória, depois, agradece": "Saber que em cada minuto pode caber tanto de euforia como de amargura. Alternadamente. Simultaneamente. Entrelaçadamente." À sua maneira, existe aqui um gesto heróico, num despojamento assumido não como última verdade, mas simplesmente por se expor fugindo à tentação de se impor. (A lição é de Celan: "A poesia já não se impõe, expõe-se.")
A escrita de Rui Caeiro, neste livro exemplarmente, como já se sentia em tantos anteriores, atarefa-se menos nos modos de dizer e mais no que propriamente tem a dizer. Sem se fazer de escudeiro nalguma disputa literária vigente e passageira, encontrou a sua economia, o seu jeito de mendigar sentidos à vida e de os trajar e equilibrar com alguma dignidade. Aqui há, no fundo, a razão de um bom carácter. Sem nada que se aproxime de um ensejo proselitista ou de um jogo moral, as regras são apenas as que tornam possível que algo de íntimo seja trocado entre quem escreve e quem lê. E aqui podemos recuperar outra ideia de Celan: "Só mãos verdadeiras escrevem poemas verdadeiros. Não vejo nenhuma diferença de princípio entre um aperto de mão e um poema." Este livro não é muitas coisas, nem se disfarça também. No fio que vai tornando tenso, Caeiro alinha e sofre de coisas que passaram, "amores de longa duração, amores de breves minutos fisiológicos, amores para todos os gostos. Ou para o único gosto que é o dele, amor." Não é um tratado, nem nada de particularmente ambicioso, mas é sério no seu jeito de se levar em conta. De contar de si, essa miséria dignificante de que sofre tudo o que é homem, como diz Louis Aragon na epígrafe que remata o livro: "[...] todo o homem tem no segredo de si mesmo essa ambição, que qualquer coisa sua fique para além de si, lhe sobreviva, deixe um traço de si. Há os loucos que escrevem os seus nomes nas árvores, não é? A tragédia deles é a minha." 

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