quarta-feira, maio 07, 2014


Conocí la memoria,
essa moneda que no es nunca la misma.


Jorge Luis Borges

Sem levar rumo, tem graça sentir como
mesmo uma chuva miúda nos afecta
o balanço enquanto, de outro modo,
ritma poças e charcos, pequenos tambores
do céu, percutindo ruas de sentido
confuso e deixando atrás de si outro desses
bairros que se amatilham nas janelas.
Estranhos corpos debruçados segurando
distâncias inseguras, reticentes. Baixo, velho
mundo, sem nem a trégua de um café.

Na dilatação da tarde, um céu em arco alto,
de primeiros astros arremessados e nuvens
forçadas pela imaginação a encastelarem-se,
promete ainda levar o dia a algum assalto.
Seguimos um olor cálido e escuro no redil
de uma arquitectura fronteiriça. Sobre a baixa
muralha do antigo jardim, o vento deixa
cair as asas e prossegue embarcado em folhas
num alto mar de fina cintura – esta fonte
inclemente, com a sua imensa sede de bichos.

No labirinto errante dos chegados ao fim
da linha, esbarram uns nas próprias sombras,
e a cada passo parecem perder o pé,
enquanto outros se encerram, mais bebidos
e já meio lerdos, de roda de tabuleiros
de ossos de pombo, com as rudes damas
pisando-se as saias. À margem da Távola,
um Lancelot anão brande uma cana e
ameaça a paz no esforço para meter a sela
a algum dos cães que preferiam a sesta.

Neste sujo recreio, às costas e nos bolsos
de todos, um quarto foi a pouco e pouco
deixado na rua, numa acumulação
vergonhosa e doce. A cama de ferro,
na imitação de um sonho, nutre uma
intimidade desesperada. E à cabeceira,
insectos sonoros desfiam o perfume
dos de sempre, dos que não se
refazem mas se têm de pé e ficam,
contra o sabor das lágrimas, na pose
de mestiços deuses de argila e tristeza.

A memória embolorece ou, insistindo,
torna-se fantástica. O que quer, volta,
baixando a voz sobre um tom mágico,
de grito frágil ou quebrado, num rumor
curvo, estranho a outros murmúrios
cheios de precisões doentias. Uma ideia só,
mas leve, num cruzar de pernas. Os caracóis
devorando-lhe o pequeno rosto ou, a meio,
o sonso tracejo da boca. Ainda a mão
aberta no colo, de palma para cima,
insaciável. Ter um olhar sobre o tempo,
o que ficou igual, só um pouco distinto.
Tudo aquilo que não volta e volta melhor
por isso.



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