segunda-feira, março 31, 2014

Respirar debaixo de água


TIAGO ARAÚJO, Respirar debaixo de água, Averno.

texto de Luís Filipe Parrado
 

Bastará a leitura dos primeiros versos para pressentirmos a força deste quarto livro de Tiago Araújo, o melhor de um poeta que, nascido em 1973, começou a publicar em 2001. São versos que desenham uma espécie de cena fundadora: “no meu círculo familiar sabe-se/que na infância estive quase a afogar-me/num rio calmo”(p.5). Uma “cena primitiva”, portanto, que evidencia, através de uma estratégia aparentemente confessional, que a voz que aqui se ouve é a de alguém que, em criança – no tempo em que tudo se agiganta, diz-se – mergulhou nas profundezas de um “rio calmo”, símile da morte, e sobreviveu para contar. Eis uma das figurações arquetípicas do poeta: aquele que desce ao mundo dos mortos e, como “lázaro”, por meio da “arte da ressurreição”(p. 27), dele traz notícia aos vivos. Todo o cuidado é pouco, porém, com os poetas contemporâneos. O seu orfismo, no caso dos mais fortes, sendo uma via cheia de possibilidades é, igualmente, um campo armadilhado. Tiago Araújo mostra-se bem ciente disso ao reconhecer que a “gravidade” dessa cena de quase afogamento “pode ter sido/exagerada”(p.5). Não deixa todavia de sublinhar, com veemência, que essa foi uma das “ficções” que ajudaram “a definir a [sua] personalidade”(p.5), a sua identidade, auto-retratando-se “como/o afogado, o rapaz que respira debaixo de água/onde os sons são distorcidos à passagem da boca”(p.5).

 

Paradigmáticos do tom geral do livro, estes versos tensos e exactos – sobre o acto de respirar “debaixo de água” e sobre a distorção dos “sons” da linguagem – dão conta de uma permanente oscilação entre o desejo de comunicar com o leitor e uma aguda consciência da vertigem traiçoeira das palavras. Talvez a poesia seja, antes de mais, um discurso sobre a própria poesia; um acto de afirmação de certas linhagens em desfavor de outras. Mas é certamente, e sobretudo, um gesto dirigido a quem lê. Um desejo de encontro, ou de desencontro, dependerá de cada poeta. Quanto a Tiago Araújo, vendo-se a si mesmo como “o afogado” que insiste em “respirar debaixo de água”, ele concede-nos uma escrita saturada de referências mais ou menos cultas (Lautréamont e Shakespeare, mas também Nick Cave & The Bad Seeds, Ian Curtis ou John Cage) que não corre o risco da candura. Pelo contrário, esta é uma poesia profundamente clarividente acerca das distorções de sentido que os usos da linguagem acarretam. Não por acaso, no poema que tenho vindo a citar, o “sétimo canto de maldoror”, o primeiro do livro, o poeta afirma que, “independentemente do que digam as teorias literárias/sobre a autonomia da obra em relação ao autor,/sem biografia é difícil continuar a escrever”(p. 5). Ou seja: em poesia (em qualquer arte) captar o movimento da vida é, em última instância, uma experiência da e na linguagem: uma experiência “bio-gráfica”.

 

Compreendendo isto, poderemos avaliar uma das dimensões mais relevantes da imagem submarina acima destacada: para falar, para que as palavras possam passar por si e chegar, ainda que inevitavelmente distorcidas, à página/superfície e aos olhos e ouvidos do leitor, é preciso que o poeta ouse descerrar a sua boca e, por consequência, corra perigo de afogamento. Neste sentido, ele dispõe-se a sacrificar, nem sempre metaforicamente, a sua vida, ou parte dela, à escrita. Deste modo Respirar Debaixo de Água é um livro que pode ser lido como uma espécie de acto sacrificial, “dor fantasma num corpo fantasma”(p.6). Não se estranha, por conseguinte, que em vários dos seus poemas a morte ronde e exiba a sua presença, seja por via do “irmão falso/[que] morreu quase à nascença” (poema “matar o tempo”, p. 10), seja pela “certeza de mais uma/morte fixada em auto-retrato”(p.13).

 

Não iludindo tal disforia, a verdade é que este poeta insiste em respirar “entre o ruído e o excesso de informação que/caracterizam o século vinte e um”(p. 9). Quer dizer, não desiste de “cantar com má voz”(p.38), como declara no último poema do livro. Submersa, condicionada pelos espaços em volta – espaços sobretudo urbanos e suburbanos, claramente hostis, uma “terra de ninguém”(p.38) que leva o poeta a perguntar se “é por aqui que se desce aos infernos?”(p.38) –, esta voz expõe, ainda assim, pequenas hipóteses de vida e alegria, por exemplo os “jogos das crianças que correm em círculos no relvado” (p. 6) ou as “maçãs/vermelhas [trazidas] de uma mercearia da rua dos Lusíadas”(p. 14) e oferecidas ao ser amado. Nesses raros momentos, os poemas são gestos de resistência (privada, mas também política) do sujeito contra a sua diluição no anonimato das “multidões” expulsas pelas “saídas do metro”(p.19). Assim se recupera, por um lado, a lição crítica e desencantada dos grandes poetas modernos (de Baudelaire ou Cesário Verde a Ashbery) e, por outro, ergue-se a intimidade (amorosa, familiar) como reduto que defende precariamente o indivíduo das ameaças de desumanização e apagamento. O poema surpreende-nos então como espaço da “felicidade doméstica, sentimento mal recebido pela crítica”(p.30). Perante a justeza de tal constatação só podemos sentir uma imensa pena pela crítica.



 

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