domingo, março 30, 2014

O leitor


Depois do almoço a chuva começou a fustigar
as janelas. Passei a tarde toda a ler.
Deixei de ouvir o turbilhão do vento,
tão denso era o livro que tinha na mão.
Fixava as páginas e parecia-me ver
rostos carregados de sombras.
O tempo deixara de fluir enquanto lia.
De súbito, as páginas iluminaram-se...
e em lugar duma inquieta confusão de palavras
eu lia: tarde, tarde em todas elas.
Não voltei a olhar através das janelas,
mas as longas linhas e as palavras começaram
a saltar dos seus lugares e a vaguear.
Compreendi então que sobre o denso jardim
radiante, o céu se abrira
e o sol brilhara uma vez mais.
Cai agora a noite de Verão até onde a vista
alcança, junta-se quem anda disperso,
nos caminhos sem fim vêm-se homens obscuros.
Estranhamente longe, como se de súbito fizesse sentido,
chega-me aos ouvidos, o pouco que ainda acontece.

E se agora levantar os olhos do livro,
nada me surpreenderá, porque tudo será grande.
Porque o dentro e o fora são uma e a mesma coisa,
dentro como fora não há senão o infinito.
Fundo-me com ele ainda mais, quando
o meu olhar se harmoniza com as coisas,
com a extrema simplicidade dos volumes—
a terra cresce cresce, até que extravasa.
Parece que abraça o céu inteiro:
A primeira estrela é como se fosse a última casa.

- Rainer Maria Rilke
(versão de Jorge Sousa Braga)

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