WE’RE QUEER, WE’RE HERE,…
…so get fuckin’ used to it!. Em tradução livre, este slogan, que surgiu nos Estados Unidos da América, nas manifestações dos homossexuais pelo reconhecimento, pode ser assim dito, em português: “Somos bichas, estamos aqui e habituem-se, caralho!”. O “estamos aqui” significava que esta exigência de reconhecimento pretendia também desarmar a forma de “assimilação” pelo lado do auto-apagamento e da discrição, que a ordem heteronormativa tanto aprecia, pois nessa condição pode ser pródiga na “tolerância”, mantendo impecável a máquina social. A questão da adopção de crianças por parte de casais homossexuais parece ser a última etapa desse reconhecimento. Mas não é. O limite a partir do qual não há reconhecimento possível é aquele onde a sexualidade humana (homo ou hetero) deixa de ser entendida como algo natural. Digamos, então, o que ela é: um discurso, uma fala. Foi isso que nos ensinaram os libertinos do século XVIII e o divino marquês, Sade de seu nome infame. Se a sexualidade fosse natural não existia a pornografia. É, portanto, a questão do “ não natural” que perturba tudo, na medida em que induz a percepção de que o considerado “natural” é uma grande impostura, necessária para a manutenção de uma determinada ordem simbólica. Não vale a pena repetir aqui os argumentos utilizados pelos sectores mais tradicionais. Eles são bem conhecidos e, aliás, impermeáveis a todo o discurso que os contesta. Mais interessantes, do ponto de vista que temos vindo aqui a seguir, são os argumentos usados em nome de uma posição dita “liberal”: a co-adopção deve ser legalizada porque, de qualquer modo, a situação não natural já existe à partida e qualquer resolução que a venha quebrar é sempre uma violência para os que estão implicados nela; mas a adopção por casais homossexuais já é outra coisa: o Estado – dizem – está a interferir através da lei na criação de núcleos familiares, está a criar uma manigância que interfere numa ordem que, sendo social, é dada como mimetizando o que é “natural”. Ouvindo estes mitólogos, até parece que o Estado liberal, o Estado moderno, não interfere em nada na criação das famílias “naturais” e que, elas, tal como existem, são uma emanação “natural” e “espontânea” da nossa humanidade; até parece que o casamento – e tudo o que dele decorre – não é a instituição mais regulada e promovida pelo Estado. Estes mitólogos de feição liberal tudo fazem (uns por cálculo, outros por ingenuidade) para que não se perceba que o Estado exerce um biopoder, com a solicitude, a vigilância e o zelo controlador com que o pastor cuida do seu rebanho. E entre as atribuições desse biopoder está a ordem heteronormativa e a pressuposição da heterossexualidade relativamente a todos os cidadãos. Por isso é que a afirmação homossexual se faz tantas vezes através de uma teatralidade: muitos daqueles que se querem libertar da heterossexualidade pressuposta e evidente que os oprime precisam frequentemente de elevar a voz e gesticular de maneira provocatória. No fundo, estes nossos mitólogos, em matéria de adopções, como noutras, não querem que o Estado expanda os seus tentáculos poderosos à “sociedade civil”. Acontece, porém, que a “sociedade civil” não é senão o nome que o Estado liberal dá ao que é simultaneamente uma criação sua e o seu exterior. E a prova está à vista: esse Estado que quer governar apenas o suficiente para governar o menos possível, precisou de desenvolver um conjunto de práticas e tecnologias que nos vigiam e comandam de todos os lados, vinte e quatro horas por dia.- António Guerreiro
in Ípsilon (24.01.2014)
Sem comentários:
Enviar um comentário