terça-feira, janeiro 28, 2014



WE’RE QUEER, WE’RE HERE,…


…so get fuckin’ used to it!. Em tradução livre, este slogan, que surgiu nos Estados Unidos da América, nas manifestações dos homossexuais pelo reconhecimento, pode ser assim dito, em português: “Somos bichas, estamos aqui e habituem-se, caralho!”. O “estamos aqui” significava que esta exigência de reconhecimento pretendia também desarmar a forma de “assimilação” pelo lado do auto-apagamento e da discrição, que a ordem heteronormativa tanto aprecia, pois nessa condição pode ser pródiga na “tolerância”, mantendo impecável a máquina social. A questão da adopção de crianças por parte de casais homossexuais parece ser a última etapa desse reconhecimento. Mas não é. O limite a partir do qual não há reconhecimento possível é aquele onde a sexualidade humana (homo ou hetero) deixa de ser entendida como algo natural. Digamos, então, o que ela é: um discurso, uma fala. Foi isso que nos ensinaram os libertinos do século XVIII e o divino marquês, Sade de seu nome infame. Se a sexualidade fosse natural não existia a pornografia. É, portanto, a questão do “ não natural” que perturba tudo, na medida em que induz a percepção de que o considerado “natural” é uma grande impostura, necessária para a manutenção de uma determinada ordem simbólica. Não vale a pena repetir aqui os argumentos utilizados pelos sectores mais tradicionais. Eles são bem conhecidos e, aliás, impermeáveis a todo o discurso que os contesta. Mais interessantes, do ponto de vista que temos vindo aqui a seguir, são os argumentos usados em nome de uma posição dita “liberal”: a co-adopção deve ser legalizada porque, de qualquer modo, a situação não natural já existe à partida e qualquer resolução que a venha quebrar é sempre uma violência para os que estão implicados nela; mas a adopção por casais homossexuais já é outra coisa: o Estado – dizem – está a interferir através da lei na criação de núcleos familiares, está a criar uma manigância que interfere numa ordem que, sendo social, é dada como mimetizando o que é “natural”. Ouvindo estes mitólogos, até parece que o Estado liberal, o Estado moderno, não interfere em nada na criação das famílias “naturais” e que, elas, tal como existem, são uma emanação “natural” e “espontânea” da nossa humanidade; até parece que o casamento – e tudo o que dele decorre – não é a instituição mais regulada e promovida pelo Estado. Estes mitólogos de feição liberal tudo fazem (uns por cálculo,  outros por ingenuidade) para que não se perceba que o Estado exerce um biopoder, com a solicitude, a vigilância e o zelo controlador com que o pastor cuida do seu rebanho. E entre as atribuições desse biopoder está a ordem heteronormativa e a pressuposição da heterossexualidade relativamente a todos os cidadãos. Por isso é que a afirmação homossexual se faz tantas vezes através de uma teatralidade: muitos daqueles que se querem libertar da heterossexualidade pressuposta e evidente que os oprime precisam frequentemente de elevar a voz e gesticular de maneira provocatória. No fundo, estes nossos mitólogos, em matéria de adopções, como noutras, não querem que o Estado expanda os seus tentáculos poderosos à “sociedade civil”. Acontece, porém, que a “sociedade civil” não é senão o nome que o Estado liberal dá ao que é simultaneamente uma criação sua e o seu exterior. E a prova está à vista: esse Estado que quer governar apenas o suficiente para governar o menos possível, precisou de desenvolver um conjunto de práticas e tecnologias que nos vigiam e comandam de todos os lados, vinte e quatro horas por dia.

 - António Guerreiro
in Ípsilon (24.01.2014)  

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