The world has no more miracles. Don’t breakMy heart, song, but be still: you are the last.Anna Akhmatova
A tinta excedeu a sombra e as palavras
começam a ouvir-se umas às outras
neste quarto revirado, aceso pela lua
e apodrecido de tanto se balançar.
Sentado ao pé da cama, nesse gesto
da flor ao afecto, feroz lembrança que
me devora as mãos. Em volta, o espaço
tocado de alguma ficção, toda
a desordem e o ranger de dentes das
horas. Pensamentos no fundo dos quais
um tipo se acaba: uma sensação de terror
com passinhos de menina a andar pela
casa. Misturada à vida, a indiferença
da primeira luz já murmura nas vidraças.
Atingido por algum sino, sinto a distância
ecoando como uma resistência de ferro
nos ossos. Tento escavar mais noite
dentro do dia, mas acabo por vestir
a camisa sobre a dor, cortar um fruto e
aceitar um rumo, esperando que ao
menos chova (só para fazer companhia).
Frágil corpo aguado junto ao meu,
fugindo-me com o olhar. Nada que possa
aprender me impediria de voltar lá hoje
e falar com ela, aborrecê-la com
disparates. A voz cega de muito mentir,
explicar mal, inventar um pouco
também. Tentar de tudo antes que o fim
nos ouça. O mau gosto dos últimos gestos,
depois o silêncio de roda de nós, como
uma mó, como se te pudesse ler
nos lábios essa legenda insuportável.
Ainda que fosse simples, difícil sempre
é desistir do inferno. E um tipo volta,
mesmo sozinho, para tentar com outro
rosto e outra voz. Conhecê-la melhor
de cada vez que a recordo. Muito comum
isto, bem sei, eu, porém, aviso-vos que
vivo pela última vez.
A rua dela ficou mais estreita, escura,
perigosa. Passo lá vez por outra, com o
sorriso de um morto. De tudo em tudo,
o mais estranho ainda sou eu. Fico dias
assim, quieto, mais uns amigos,
a ver o que chove. Perdidos a meio
de canções hipotecadas que soam hoje
como súplicas, medidos contra a mesma
escuridão, de frente para algum espelho
tardio com as mãos só protegendo ainda
um copo. Encostado, um arpão boceja
a um canto, e as nossas sombras,
como escudos largados no chão,
perderam já a esperança de virem
a forrar algum convés endiabrado.
Das vozes que os raros ouvem, só uns
soluços insistem connosco, depois
que até de sofrer, enfim, um tipo se
esquece. Fumando de mãos nos bolsos,
um a um, levamos a nossa pequena
chama contra a noite que, entretanto,
se refez, e seguimos numa procissão
aos lugares santos onde o sonho se
perdeu de nós.
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